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Relação entre Criatividade e Saúde na Gestalt-terapia (Selma Ciornai)

publicado em 09.05.2017 por anapaula

Relação entre Criatividade e Saúde na Gestalt-terapia* 
Palestra apresentada em 1995, no I Encontro Goiano de Gestalt-terapia e publicada na Revista do ITGT (Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-terapia) nº 1, Goiânia, 1995.


Selma Ciornai

A afinidade da Gestalt-terapia com as artes existe desde o seu começo Frederick Perls trabalhou em teatro , teve aulas de pintura , e muitas vezes utilizava recursos de expressão artística em seus trabalhos. Laura Perls estudou dança e Paul Goodman era poeta e escritor .

A relação da Gestalt-terapia com criatividade se inicia em suas raízes na concepção existencial de ser humano na qual o ser humano é visto como estando sempre num possível estado de refazer-se, de poder escolher e organizar sua existência criativamente. A visão existencial afirma a capacidade humana de escolher seu próprio destino , de transcender limites e condicionamentos. Esta postura no entanto não implica em que se ignore que existam pressões, violências , condicionamentos , limites externos e pessoais , mas entende que a possibilidade de escolha , de lidar criativamente com estes limites é sempre existente. Victor E. Frankl (1959), psiquiatra que passou parte da segunda guerra em um campo de concentração nazista , ao escrever sobre suas experiências no campo, afirma que mesmo sob condições horríveis e absolutamente desumanas como aquelas, existia a possibilidade de uma escolha no como posicionar-se internamente diante daquela situação .

Podemos dizer que quanto maior for a awareness de uma situação , maior as possibilidades de que o ser humano possa ser realmente sujeito de sua história ou , colocado em termos mais poéticos, artista de si mesmo, artista de sua própria existência. É claro que neste processo, vários fatores que advêm do ser o indivíduo um ser social ( fatores históricos, sociais, políticos , econômicos, familiares etc.), vão se manifestar e ter influência no curso e forma de nossas existências, mas o que a postura existencial afirma é que o indivíduo não pode ser visto apenas como “produto” do meio, pois com ele pode sempre interagir de forma criativa, inusitada e transformadora.

A relação da Gestalt-terapia com criatividade se estende também à concepção gestáltica de funcionamento saudável ,que em todos os escritos básicos da abordagem , é equacionada à funcionamento criativo .

Na Gestalt-terapia , o indivíduo é visto como um ser relacional , um ser em processo de devir , em constante troca criativa com o meio .

Desejos e necessidades do indivíduo assumem dominâncias, que são o movimento de uma tensão interna de se destacar proeminentemente formando uma figura, i.e., uma gestalt, que vai mobilizar a energia do organismo para sua completude. Quando estes processos requerem recursos do meio para sua realização, estas figuras despontam na consciência mobilizando as funções de contato do indivíduo, que são seu instrumental para ir ao encontro, sentir, avaliar e selecionar o que se encontra a sua volta. O indivíduo organiza estas experiências de forma que orientem o tipo de contato que estabelece. Todo contato é potencialmente criativo, pois lida com o novo . Se estou na praia querendo nadar, o fato de já ter nadado antes me dá suporte para que eu entre no mar, me lance nas ondas e vá para longe da beira-mar, para onde as águas são mais fundas e “não-dá-pé”, mas o mar que está diante de mim é sempre novo e inesperado.

O indivíduo então, através dos múltiplos e variados contatos que vivência, cresce e se desenvolve, idealmente assimilando o que o enriquece e nutre e alienando de si o que lhe é tóxico, respondendo às requisições, exigências e convites do meio num contínuo processo de ajustamento criativo. Ajustamento criativo e contato são conceitos chaves na Gestalt-terapia pois implicam não apenas em “ajustamento” mas em “ajustamento criativo” e não só em “contato” mas em “contato criativo”.

Como uma planta que cresce assimilando do solo e do ar nutrientes que lhe ajudarão a crescer, ao mesmo tempo em que cria e desenvolve mecanismos para se proteger de elementos que possam ameaçar sua existência, filtrando poluentes, desenvolvendo raízes fortes, fechando-se ao contato com elementos potencialmente agressivos, criando formas inusitadas para receber o sol ou proteger-se das intempéries.

Da mesma forma crianças escolhem estar perto de pessoas e ambientes que lhes são estimulantes e as ajudam a crescer saudavelmente, retraindo-se na medida do possível de pessoas e ambientes tóxicos, desenvolvendo potencialidades e habilidades para responder aos convites e/ ou requisições das pessoas e do meio que as circundam de forma criativa.

Evidentemente que os processos de ajustamento criativo nem sempre levam a processos de crescimento saudáveis. Às vezes as pressões e cargas negativas do meio são tão fortes que a pessoa desenvolve defesas que terminam por limitá-la em sua existência. Estas defesas no entanto devem ser vistas como a melhor resposta que a pessoa pôde criar no momento e situação específica em que se encontrava . A limitação em questão não reside no tipo de defesas criadas, mas no fato de que freqüentemente o indivíduo automaticamente as perpetua, sem dar-se conta que delas não mais necessita ,ou que conta hoje com outros recursos que os de então para proteger-se (ou, com a possibilidade de criá-los).

Na medida portanto que estas dominâncias vão surgindo, figuras vão se formando na consciência, e quando bem resolvidas vão dando lugar à emergência de novas figuras num processo contínuo e vital de formação de figura-fundo .

O que vai facilitar a resolução e emergência de novas figuras no campo perceptual, são os processos de awareness , que vão ajudar a que estas figuras se definam com nitidez e clareza de forma energetizada em relação ao fundo – a configuração presente da existência do indivíduo.

Awareness não se dá somente no nível cognitivo , mas também nos níveis sensório- motor, emocional e energético, e é por isto que em Gestalt-terapia se fala em “awareness organísmica”. É nos processos de awareness que o indivíduo aguça e percebe tanto os seus sentidos, como as relações de significado que estabelece entre eles (o “sentido”que advém da percepção dos sentidos); que tanto experiência como percebe a forma como organiza suas experiências; que tanto configura como reorganiza suas experiências , e é por isto que processos contínuos de awareness são sempre acompanhados de novas “in-formações” , i . e . , a formação de “figuras” na percepção , que criam um novo saber. A este tipo de awareness se dá em Gestalt terapia o nome de “awareness criativa”.

Funcionamento saudável vai ser então o fluxo contínuo e energizado de awareness e formação perceptual de figura-fundo, onde através de fronteiras permeáveis e flexíveis o indivíduo interage criativamente com seu meio ambiente, desenvolvendo recursos novos para responder às dominâncias que se lhe afigurem e usando suas funções de contato para poder avaliar e apropriadamente estabelecer contatos enriquecedores e interrompê-los quando tóxicos e intoleráveis. Saúde seria a prevalência e relativa constância deste tipo de funcionamento.

Em contrapartida, funcionamento não saudável vai ser o funcionamento caracterizado por interrupções, inibições e obstruções destes processos, com a conseqüente formação de figuras fracas, desvitalizadas, mal definidas, nebulosas (como se estivéssemos usando um óculos de grau errado), confusas à percepção, que ao não se completarem vão dificultando progressivamente as possibilidades de contatos criativos, vitalizados e vitalizantes com o presente

Doença ou patologia seria então a recorrência crônica deste tipo de funcionamento, com a conseqüente cristalização das dificuldades do indivíduo e empobrecimento de seus contatos com o mundo. Do que isto decorre?

Às vezes as figuras de nossas necessidades ( físicas, emocionais, espirituais etc.) não se configuram claramente e não são satisfatoriamente completas. A qualidade do contato da pessoa com sua interioridade, com os outros e a situação presente é pobre.

O cliente que nos procura vem muitas vezes sentindo-se angustiado, ansioso, com uma sensação de vazio e falta de graça em sua vida, mas muitas vezes não tem realmente contato com o que lhe faz sentir-se assim. Ou se tem, não consegue mobilizar-se para agir de forma a atender à suas necessidades. Por exemplo, a pessoa pode sentir-se solitária mas não conseguir ir em busca de um contato humano que lhe seja acalentador.

Quando isto acontece, a energia está provavelmente presa em situações inacabadas do passado, que são experiências antigas que ficam como forma fixas no presente, obstruindo o fluxo livre e criativo de percepção e resposta à situações novas, impingindo uma avaliação arcaica às situações atuais. Como se o indivíduo usasse um óculos que colorisse qualquer perspectiva presente ou futura com as cores das experiências passadas. Assim, no exemplo da pessoa solitária acima citado, experiências passadas doídas, negativas e frustrantes, podem estar revestindo de desesperança a perspectiva de qualquer movimento em busca de um outro.

Da mesma forma, defesas criativamente elaboradas no passado em resposta à avaliações acuradas de situações vividas, ao se repetirem automaticamente colocam a pessoa em permanente estado de prontidão, obstruindo o fluxo do sentir e impedindo a pessoa de vivenciar situações novas que poderiam ser nutritivas e enriquecedoras.

Estas situações passadas freqüentemente estão parcial ou inteiramente fora do campo de awareness .São gestalts ocultas. A pessoa se relaciona com os outros sem vitalidade, a energia não está lá, mas bloqueada em situações passadas mal resolvidas, e por isso chamadas de inacabadas.

Quando a figura é opaca, confusa, sem graça, desenergetizada (uma gestalt fraca), algo está sendo bloqueado, alguma necessidade orgânica vital não está sendo expressa; a pessoa não está ali inteira… (Perls, Hefferline & Goodman, 1951,pp231-232).

A terapia vem então para ajudar a expandir o fluxo de energia e awareness, liberar a energia retida em situações antigas e inacabadas, trazendo-a para o aqui-e-agora, facilitando assim, através do suporte da relação terapêutica, a elaboração interna daquilo que antes não pode ser bem elaborado, novas experiências, e a compreensão e eventual transformação dos padrões de relacionamento do indivíduo consigo próprio, com os outros e com o mundo.

Neste aspecto configura-se uma outra instância em que situa-se a criatividade na Gestalt-terapia , ou seja, naquilo que se refere à sua prática e metodologia. A Gestalt-terapia caracteriza-se por excelência por ser uma terapia que permite ao terapeuta inventar e/ ou utilizar-se com liberdade e criatividade de técnicas e experimentos provindos de diversas origens, desde que não se perca de vista os princípios epistêmicos fenomenológicos que caracterizam a abordagem gestáltica, os objetivos terapêuticos acima delineados, e a visão gestáltica de processo humano, o que inclui a compreensão de como se dão processos e distúrbios de contato, percepção e awareness.

Se Fritz Perls tornou certas técnicas populares, o terapeuta gestáltico não necessita obrigatoriamente utilizá-las, nem tão-pouco restringir-se a elas.

Assim o terapeuta gestáltico pode trabalhar com os experimentos de contato e awareness que se fizeram conhecidos nos trabalhos de Fritz Perls e outros gestaltistas da época, ou inventar outros. Pode trabalhar com sonhos, visualizações, fantasias, mitos, contos, dramatizações, exercícios de relaxamento e sensibilização corporal, atividades expressivas tais como dança, desenho, modelagem, poesia, experimentos de dinâmica grupal, de meditação etc., – ou com nada disto. Realmente, a Gestalt-terapia, ao contrário do popularmente apregoado, não se caracteriza por técnicas específicas, mas sim por sua postura na relação terapêutica, por sua postura na eventual utilização de técnicas e experimentos, e na sua compreensão dos objetivos do trabalho terapêutico.

Assim, a relação da Gestalt terapia com criatividade se dá em três instâncias: na sua concepção existencial de ser humano, na sua concepção de saúde e funcionamento saudável, e na sua metodologia .

Finalmente, gostaria de concluir dizendo que como Gestalt terapeuta tenho por “profissão de fé”, a crença profunda que a função da terapia é sobretudo, a de ajudar o indivíduo a poder instalar ou restaurar um fluxo de interação criativa com o mundo, ampliando assim, nas palavras de Ostrower (1977), sua abertura para a vida.

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REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Ciornai,S. (1989). Em que acreditamos? Mesa Redonda, II Congresso de Gestalt Terapia , Caxambú, RJ. Publicada em 1991 no Gestalt Terapia Jornal nº 1, publicação do Centro de Estudos de Gestalt-terapia do Paraná.

Ciornai , S.(1991). Gestalt-terapia hoje : Resgate e expansão. Revista de Gestalt, Nº 1, publicação do Departamento de Gestalt-terapia do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo .

Ciornai,S. (1994). Arte terapia gestáltica: Um caminho para expansão de consciência .Revista de Gestalt, Nº 3, publicação do Departamento de Gestalt-terapia do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo.

Frankl ,V.E. (1963). Man’s search for meaning: An introduction to logotherapy . Washington Square Press: New York.

Ostrower, F.(1977) . Criatividade e processos de criação. Editora Vozes: Petrópolis.

Perls, F., Hefferline, H .& Goodman, P.(1951).Gestalt therapy: Excitement and growth in human personality. New York: Dell Pub. Co. 
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* Esta palestra contém temas abordados em dois trabalhos anteriores (citados na Bibliografia), do que decorreu a liberdade de reproduzir frases e trechos neles contidos sem a preocupação de citar sua origem através de citações e referências, visto serem estes textos da própria autora. 

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