O Convite
Vivendo, a textura, a tessitura, a aventura do texto
Paulo Barros
” Enquanto escrevia, encontrava-se sem pecado. Inventar era receber a absolvição, e o brilhante esforço de traduzir em palavras o que lhe impunha a imaginação purificava o seu ser de todos os venenos.”
Sparkenbroke de Charles Morgan.
Vamos estar no IGSP, para o papo na cozinha, nesta sexta (28 de setembro/2001), às 17:00 h onde lerei alguns textos, conversaremos sobre o processo criativo, tudo isso como aquecimento para a seguir, nos aventurarmos em algum experimento de escrita criativa.
Quando não sei mais quem sou, desejando estar sozinho,
volto a meus autores preferidos.
Neles uma espécie de aconchego,
uma viagem no tempo,
uma forma de permanência.
Assim como a da árvore. Em sua beleza, sementes,
o fremir da brisa em sua folhagem.
Nela me detenho, a vida em suas raízes.
À sua sombra me deito. Me entrego ao pertencer
à vastidão da paisagem.
E então, se tenho sorte, o futuro se abre, e
com ele um desejo de escrever. Deste modo viver afinidades.
Meu texto se faz semente.
Brota como um olho d`água.
Como riacho passeio por meus gigantes, autores da floresta.
Ao fluir com meu texto um desejo se faz intenso,
uma espécie de possessão,
duplo desejo de antinomias.
Não abro mão de nenhum de meus autores.
Anseio, com quem me ler estar sozinho.
Seria bom estar com você nesta atividade. Aquecendo a imaginação, matando as saudades e
quem sabe inspirando a intimidade com o próprio texto.
O Papo
No papo na cozinha, lemos o poema acima, percorrendo suas imagens e metáforas, da origens do texto, do estar sozinho, revisitar os gigantes do espírito, do aconchego e da sensação de permanência. O contato com a permanência evocando a imagem da árvore, sua beleza – o fremir do vento em sua folhagem, o vínculo em suas raízes, suas sementes. A entrega, o pertencer à paisagem. A sorte, o texto em semente, a suscitar a imagem do brotar do olho d´água. Fluir do riacho como movimento (impermanência), passeio acompanhado na presença dos autores gigantes, criadores das florestas. Desejo intenso de conduzir a quem me ler, à companhia dos gigantes, às grandes leituras, ao desejo de retomar as possibilidades da criação do texto – ou qualquer outra forma de expressão criativa. Este lugar interno de que brota toda vida, todo sentido: participar e pertencer.
O diálogo com os participantes nos conduziu à permanência/impermanência. Palavras. Símbolos de preenchimento, completude, de comungar. Alguém diz que aprisionamos a morte. E então passamos para o texto seguinte:
ESPÍRITO, UMA INVENÇÃO DO ESPÍRITO
Se o espírito não existisse só
um espírito poderia criá-lo.
Em uma cabana vivia um velho tão velho que ninguém mais o visitava. E isto há tanto tempo que dele ninguém se lembrava. Não esperava mais visitas e também delas tinha medo. Quem senão a morte poderia dele se lembrar.
Cozinhava suas batatas em um caldeirão de ferro preto. Esquecera onde as arranjara, e toda noite se encantava com que elas estivessem tão macias quando ainda há bem pouco estavam frescas e coloridas de terra. Dos seus cochilos acordava bocejando lembrando que estava com sono.
Caminhava atrás da casa como quem fosse para o mato. Até mesmo os pássaros mais tímidos com ele não se importavam. Sua presença era como a das árvores, suas preferidas.
Depois de temer a morte até mesmo a desejara. Mas temer e desejar são cansativos e passageiros e por longos períodos deu de esquecê-la. Quando se lembrava, vislumbrava um esquecimento pressentido como recíproco. E algo em si sorria como se sorri na presença de uma lembrança amiga. Com o tempo tudo foi adquirindo esta qualidade. Sua existência tornou-se sutil.
Um dia não mais voltou para a cabana. Quedou-se junto à árvore mais antiga. E por uma afinidade na compreensão da passagem do tempo, começou a perder idade. Foi perdendo, perdendo e ficou ali tanto tempo que ficou sem nenhuma idade. Sua consciência foi se tornando luminosa. O seu corpo não mais existiu, pois que forma poderia ter o corpo de um homem sem nenhuma idade.
A árvore e seu companheiro passaram a contar histórias em silêncio. As histórias eram tantas e tão antigas que saíram do tempo. Penetraram por uma imensa porta onde havia uma inscrição, com a mais antiga das palavras. Embora não conhecessem aquela linguagem dos primórdios, reconheceram o seu significado eterno : AGORA.
Só se sai do tempo quando se penetra nas coisas. Penetra-se as criaturas quando estando totalmente presentes, deixa-se de existir e se é transportado de maneira integral até elas. Assim os antigos diziam que para penetrar o espírito das criaturas, é necessário que se deixe de existir, que se abandone tudo o que se é para se poder estar com elas. E então se lembrar de quando se era um com as coisas. Fazer isto é uma necessidade do espírito. Um espírito é a necessidade de se constituir enquanto tal. O espírito anseia por encontrar a si mesmo. E só se encontra quando esquecendo-se, sai ao encontro do espírito que existe nas criaturas.
Conta-se que esta história se passou numa ocasião em que a morte, estando ocupada consigo mesma, não existiu por uns tempos. Pois também a morte só existe quando se ocupa das criaturas.
E tendo o velho deixado de existir ao encontrar o espírito das coisas, tornou-se ele mesmo em espírito. Escapou assim da morte que até hoje vive a procurá-lo.
Todas estas coisas foram contadas por um velho, não tão velho como o primeiro, mas que aprendeu a escutar uma árvore contar histórias.
As pessoas têm medo do silêncio. Não querem aprender. Só se interessam em saber. Por ter estado o velho à sombra da árvore mais antiga e ter lá permanecido, as pessoas confundem sombras com espíritos e julgam encontrar a morte sob as árvores mais frondosas dos lugares ermos.
Desde estes tempos todo velho que aprendeu a escutar as árvores tem muitas histórias para contar. Todo mundo já viu alguma vez um velho em silêncio, debaixo de alguma árvore, fingindo que está cochilando. Pois é este o seu segredo. Está escutando histórias. A gente não vê mas tem sempre um pouco de brisa passando por ali. Por isso de vez em quando uma folha se mexe. O vento que vem depois é a brisa indo embora depressa. O velho finge que acorda e vai embora também. Mas leva o coração cheio de histórias.
Estamos de volta às origens do texto. Histórias que desejamos compartilhar. A autoria sendo apenas o privilégio de ser o primeiro a escutar. Toda arte sendo filha de uma intimidade, com o mundo, com as profundas impressões que a vida, bem vivida, nos proporciona. As necessidades de expressão, de compartilhar, formas de permanência e pertinência. Todo verdadeiro artista sendo sempre menor que sua arte, como o viajante interior capaz de conduzir, através da estética, em sua linguagem compartilhada, as possibilidades de significação e preenchimento de necessidades espirituais.
Para passarmos para outras tonalidades, revitalizantes e mais joviais, encerramos o nosso papo com a leitura do terceiro texto.
O Poeta Sai da Gaveta
Só mesmo um poeta poderia acreditar. Que um poeta ficaria na gaveta. Bem que tentou. Entrou ali e tentou ficar quietinho. Bem quietinho. Conforme resolvera. Que poesia não tem futuro… Mas, é sina de poeta em gaveta não caber. Mesmo ali se mexe a vida. E folhas e letras e palavras se mexem inquietas. O poeta quieto na gaveta. Inquietam-se as palavras. Na busca de folhas em branco. Folhas virgens. Versos por escrever. Que hão de cantar a vinda. Da vida que há por viver. Sementes de aurora. Novos dias brotando. Na vida que há em certos dias. Certos dias na vida da gente!
Como aquele em que um pássaro me segredou. Simplesmente! Pousou em meu ombro e sussurrou:
– Repara! Cada pessoa tem uma porta. Que se você entrar
por ali, nunca mais ela sai da sua vida. Porque na eterna rede do amor mais um ponto se deu. O amor. Este secreto fio com que se tecem os mistérios do destino. Este fio que não se rompe jamais. Este fio do qual por desventura nos perdemos. Quando nos encontramos nos buracos da rede. Nos seus desvãos. Fora dos fios. Por onde percorre a vida como nas veias. Esta rede eninharada. Este enredo de ninhos. Em que dois pássaros se encontram em pleno vão. E se enlaçam o destino e a criatura. E em amor se fundem o criador e a criação. Tal assim como poeta e musa quando se encontram. Ao que, de poesia não ter futuro, descobriu o poeta que sem poeta não há destino. Porque não busca o poeta a felicidade. Acaso a encontra nos olhos de musa ao iluminar com palavras a beleza do mundo. Este mundo em que se adentra pela porta do destino. Como este que se traça como um relâmpago cruzando o céu. O mesmo instrumento dos deuses para falar com os homens:
– Amarás à primeira vista.
– Como, Senhor? _
– O verdadeiro amor reconhecerás ao primeiro encontro.
– Como, Senhor?
– Do fundo mais precioso de teus sonhos. O verdadeiro amor conhecerás em sonhos.
– Por Deus, Senhor!
– Sim, em meu nome. Acredite.
Sem poeta não há destino. Como este que se irrompe quando alguém lhe faz pedidos míticos. Querem ver? Pois escutem:
– Quero ser o seu sorriso interno.
– O que?
– Sim, quero ser o seu sorriso.
– Queres ser a minha alegria, a minha felicidade? Queres mesmo iluminar a minha alma?
– Sim, e mais. Confio em você. Como nunca. Absolutamente. Serei trapezista com você. E em meu vôo encontrarei teus braços. Pousarei em teus braços. Seremos repouso um para o outro.
– Sabes bem o que me pedes?
– Sim, e mais. Quero que me reveles. Quero que digas o meu nome. E sei que sabes de coisas que apenas começam a acontecer.
– Não bem que eu saiba. Não sabia que sabia. Mas as reconheço. Você me faz recordá -las. Você me faz lembrar de todas elas. São sonhos muito antigos. Eu as conheço apenas de sonho. E pelo nome. Apenas pelo nome. De ouvir contar. Mas muito bem contado. E muito bem escutado.
Fomos para os quitutes da cozinha. Preenchidos. Muita gente com coceiras, desejo de resgatar, voltar a cultivar formas próprias de criação.
Um brinde aos presentes e aos ausentes
Um desafio.
Dar continuidade ao fluxo das impressões e expressões criativas.
Paulo Barros
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