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Gestalt – Expandindo Fronteiras ou Em busca das Respostas Perdidas (Luiz Lilienthal)

publicado em 09.05.2017 por anapaula

Gestalt – Expandindo Fronteiras 
ou 
Em busca das Respostas Perdidas

Trabalho apresentado no “VI Encontro Nacional de Gestalt-terapia e III Congresso Nacional da Abordagem Gestáltica, realizado em Florianópolis, SC, e na “Revista de Gestalt” Nº 7, 1998

Luiz Lilienthal 

Desde que fui convidado pela Coordenação deste evento para estar apresentando um trabalho em sua abertura, me vi às voltas com a questão de como apresentar uma fala sobre um assunto que sei ser intrincado, controvertido, polêmico e, freqüentemente, negado: a questão social.

Venho me dedicando a pensá-la há cerca de dez anos. Neste período tive muitas oportunidades de discutí-la com colegas, com alunos e de apresentá-la em simpósios, congressos e encontros. Tentei vários estilos de comunicação: desde o estilo “cool” e bem comportado, até o estilo agressivo em tom de discurso sindical. Nenhum deles me satisfez, uma vez que não conseguia tocar meus interlocutores da forma como gostaria. Foram muitas tentativas frustradas, muitos momentos de emoções muito fortes. Minha sorte foi de nestes dez anos ter também envelhecido e amadurecido dez anos e, assim, ter angariado clareza que este assunto não é tão importante para grande parte das pessoas quanto o é para mim. Creio ter chegado a uma clareza tão grande sobre isto, quanto a clareza que tenho da necessidade de que questões sociais sejam tematizadas, discutidas e trabalhadas pela sociedade, pelos psicólogos e, principalmente, pelos meus pares, os gestaltistas.

Porisso Eu gostaria que você aceitasse ser hoje um Tu para mim, com o meu comprometimento de ser um Tu para você. Te peço que nesse momento tentes abstrair esta situação desigual na qual nos encontramos, em que por uma questão formal só Eu tenho a palavra, para que possamos trocar idéias de igual para igual. Temos alguns dias para fazê-lo aqui em Florianópolis e um futuro de trocas pela frente.

Me parece impossível pensar questões sociais sem pensar política; e igualmente impossível pensar política sem pensar em história. Assim, uma localização histórica e política é condição indispensável para a discussão e posicionamento sociais. No momento em que escrevo isto, me dou conta de uma forte reação dentro de mim,

reação que me diz “tocastes onde não deverias ter tocado”. Também me dou conta que isto se deve a dois fatores. Um da minha história pessoal, outro de uma fantasia de que Tu, neste ponto, torças o nariz e penses “devo continuar aqui ou não?” Como só posso dar conta de mim mesmo, vou pela minha história.

Eu era muito pequeno, mas me lembro diariamente lendo o jornal e não entendendo porque estudantes viravam automóveis de cabeça para baixo, ateavam fogo a ônibus e bondes e faziam passeatas. 1964. Um golpe. O que é golpe? O que é militar? E exílio? E política? Cuidadosamente era informado das minhas curiosidades e instruído a não discutir isto com ninguém. Ditadura. Cuidado com o que dizes. Que espécie de preso é um preso político? Movimento social, o que é isso? DOI-CODI. Festival Internacional da Canção. O homem alunisou. Tortura. Transplante de coração.

Noventa milhões em ação. Hippies? Maconheiros. The dream is over. O milagre brasileiro. Me acostumei a conversar e discutir toda sorte de assuntos, mas não política. ARENA e MDB. Entrei na Faculdade de Engenharia. Perigo: havia política. Entrei na Faculdade de Psicologia. Perigo imenso: havia cabeças pensantes por todos os lados! Cabeças direitas e esquerdas. Fui me acostumando. Pluripartidarismo. Figueiredo. Tancredo. Instituto Sedes Sapientiae? o nome do perigo! Mas perigo do que?

Enquanto isto, ficava cada vez mais claro para mim, que a pobreza e a desigualdade social eram fatos que me tocavam demais e que Eu tinha que lidar com esta questão de alguma forma. Não entendia como podiam existir pessoas que não se tocavam com estas questões.

Tocar é uma palavra chave. Porque Eu não podia tocar e ser tocado por pessoas diferentes de mim? Porque, dependendo da situação, Eu era mais ou menos que alguém outro? Minha tendência sempre foi de respeitar os outros da forma como são. Eu e Tu sobre o mesmo chão. Dialogia Social. Sempre que percebo esta Dialogia Social rompida, vejo minorias discriminadas, iguais que não sabem lidar com diferentes, pobreza, sofrimento, conflitos, violência, drogados, aidéticos, contraventores. Não é a formação desses grupos que impede a Dialogia Social. É o rompimento dela que gera estes grupos, a marginalidade. Entendo Dialogia Social como a Dialogia entre diferentes segmentos sociais.

Na introdução do volume sobre a Prática Gestalt-terapêutica de Gestalt-Terapia, (Perls, Hefferline & Goodman, 1991), Perls apresenta esta questão de forma muito clara:

“…Esta é uma polaridade própria de nosso mundo: ouvir ou lutar. Pessoas que escutam não lutam, aqueles que lutam, não escutam. Se em nossa sociedade as partes beligerantes – casais, empresas – escancarassem seus ouvidos para poderem ouvir seus oponentes, a inimizade em nosso meio e entre os povos diminuiria drasticamente. Ao invés de ‘eu vou te dizer o que está te faltando’, entraria ‘eu estou ouvindo o que você deseja’, e assim estaria aberto o caminho para uma discussão razoável. Isto é válido tanto para nossos conflitos internos quanto para a situação mundial de forma geral

Mas como podemos abrir ouvidos e olhos do mundo? Encaro meu trabalho como uma pequena contribuição para este problema, na qual pode estar contida a possibilidade de a humanidade permanecer viva” (p 8).

Ficando mais velho e paulatinamente me transformando em gestaltista, meu interesse se voltou tanto para questões terapêuticas quanto para questões educacionais. Foi ficando cada vez mais claro para mim que ser terapeuta é, em grande escala, ser educador, e que ser educador é, em grande escala, ser terapeuta. E a evidência deste fato é, para mim, que tanto processos terapêuticos quanto processos educativos têm o mesmo objetivo: o crescimento pessoal. (Para maiores detalhes sobre esta questão, veja Lilienthal, 1995 e Lilienthal, 1997). Faço estas afirmações sempre fundamentado na literatura gestáltica.

Me chama a atenção o fato de que em minha formação como gestaltista tenha visto pouco, para não dizer nada, sobre o social. É muito difícil encontrar bibliografia que trate do assunto de forma explícita. Posso estar lidando com uma amostra viesada, mas quando encontro o assunto, o autor é europeu e, via de regra, o livro trata de Gestaltpedagogia. E isto apesar de a Gestalt-terapia ser muito conhecida como abordagem que trabalha grupos. A bibliografia que trata do assunto se restringe então, na franca maioria dos casos, a questões grupais, e dificilmente abrange o social.

Já tentei encontrar uma razão para tal, mas não consegui chegar a nada de conclusivo. Fico me perguntando como num país tão carente como o Brasil nada tenha brotado neste sentido. A cultura e história brasileiras parecem me fornecer algumas pistas. Me vem a imagem de alguém que quer fazer algo mas não tem auto-suporte suficiente. E a falta de auto-suporte tem origem ou em fracassos ou na escuta de uma voz que fique dizendo “não dá, não pode, deixe como está, não mexa com isto”. Uma sabotagem interesseira e interessada.

A Gestalt (chamarei de Gestalt a teoria e prática comuns à Gestalt-terapia e à Gestaltpedagogia) é uma teoria composta nominalmente por Perls, Hefferline & Goodman à partir da influência de muitas e variadas fontes. E algumas delas com preocupações claramente voltadas para o social, como, por ordem histórica, o Holismo de Jan Smuts, a Teoria Organísmica de Kurt Goldstein, a Teoria de Campo de Kurt Lewin, a Relação Dialógica de Martin Buber e o Pragmatismo Crítico de Paul Goodman. A seguir farei uma breve apresentação de alguns dos muitos pontos que considero relevantes nestes autores em termos do político e do social, procurando contextualizá-los na história de vida dos autores, na medida em que me foi possível levantar suas histórias.

Perls travou conhecimento com o trabalho do filósofo Jan Smuts (1870-1950), durante os anos em que residiu na África do Sul. Foi muito influenciado pelo Holismo, apesar de ter se encontrado pessoalmente com Smuts apenas uma vez. Smuts foi também general do exército sul-africano tendo ido para o campo de batalha. Foi primeiro-ministro, ministro do interior e ministro da justiça de seu país. Hábil político e negociador, esteve envolvido como diplomata da África do Sul em negociações com a Grã-Bretanha. É um dos fundadores da Organização das Nações Unidas.

“No livro de Smuts (1996) é possível encontrar as sementes de um número extraordinariamente grande de idéias de Perls, incluindo algumas que usualmente são creditadas à Psicologia da Gestalt e à Teoria de Campo. Por exemplo, Smuts introduz da Física a idéia de que tudo tem um campo e que coisas e organismos são ininteligíveis sem estes campos. … Enfatiza o processo, afirmando que tudo está num incessante processo de mudança criativa e propõe ser característica dos organismos formar totalidades estruturadas. Smuts enfatizava a natureza holística das pessoas e do universo e a interconexão de todas as coisas, vivas ou não, e falava da forma pela qual indivíduo e universo estão ativamente ‘criando totalidades’. Perls pode ter encontrado também em Smuts a idéia para seu ciclo de interdependência entre organismo e meio” (Clarkson & Mackewn, 1993, p 15).

Não me parece haver dificuldade alguma em conceber o social à partir desta descrição do trabalho de Smuts e sua influência sobre a Gestalt, feita por Clarkson & Mackewn. Organismos e globo terrestre formam totalidades entre si e por si, dando uma idéia clara de interdependência, que leva necessariamente à noção de responsabilidade que cada organismo tem pelo que ocorre com seu meio concebido de forma restrita ou não. As idéias de Smuts parecem conter também as sementes do que hoje tem a denominação de Ecologia, que na minha concepção necessariamente também abrange o social. Ecologia é a ciência que estuda a relação entre os organismos e o meio ambiente, e não somente o meio ambiente.

Kurt Goldstein (1878-1965), foi um médico alemão que se especializou em neurologia e psiquiatria. Teve uma carreira meteórica e brilhante, tendo se especializado com os médicos e cientistas mais famosos de sua época. Logo também se tornou um deles. Judeu, imigrou em 1935 para os Estados Unidos, ocupando importantes cargos em renomadas Universidades. Fundamentado em grande escala no Holismo de Smuts e em observações feitas em mutilados da Primeira Guerra Mundial, propõe a Teoria Organísmica, uma profunda, completa e visionária visão de homem, muito para além de seu tempo. Uma prova disto, é o tributo que Oliver Sacks, neurologista atual afamado e considerado revolucionário, presta a Goldstein no prefácio da edição de 1995 de The Organism, considerando-o fonte primordial de seu trabalho.

Apesar de restringir seus escritos ao organismo e seus distúrbios, não encontro dificuldades de reconhecer aspectos do social na obra de Goldstein, uma vez que ele sempre concebe o organismo como parte da díade organismo-meio, Vejamos:

“Uma observação geral: Toda criatura é, por assim dizer, simultaneamente perfeita e imperfeita. Considerada em isolamento, toda criatura é, em si, perfeita, bem organizada e viva. No entanto, se considerada em relação à totalidade, é imperfeita em vários graus: a criatura individual comparada com a totalidade da natureza, revela as mesmas características que um processo isolado no organismo, em comparação com a totalidade do organismo, ou seja, imperfeição e rigidez, existência apenas em estando em contato com o todo, apenas com o suporte do todo, como se fosse um reflexo. Desta forma, está condenado a morrer assim que este suporte cesse. Por isso é transitório por sua própria natureza e está no caminho da morte” (Goldstein, 1995, p. 375).

É para mim, muito evidente que Goldstein considera a totalidade muito similar a um organismo, e que ele neste trecho está falando do que ocorre quando um organismo se vê isolado de outros organismos; está falando da relação entre organismos ou da falta de relação; ou seja, está falando do social. Vejamos mais um exemplo disto:

“A criança está apta a viver devido às pessoas à sua volta, particularmente a mãe organiza seu mundo de tal forma que ela é exposta ao mínimo a situações de que não possa dar conta. Assim, o comportamento da criança não é de maneira alguma expressão unicamente de sua capacidade concreta, mas também da atitude abstrata de outrem. Porisso o comportamento da criança se torna compreensível como o resultado da atividade de duas pessoas. Observações de assim chamadas pessoas primitivas, revelam a mesma característica, como o indicam pesquisas, particularmente a de Paul Radin. Ele mostrou que em todas comunidades primitivas vivem dois tipos de pessoas, ‘os que sabem’, que têm a capacidade da atitude abstrata e a empregam, e ‘os que não sabem’, que também têm a capacidade de abstrair, mas que na maior parte do tempo não a utilizam, parecendo, assim, poderem viver exclusivamente no nível concreto, inferior. A cultura é organizada ‘pelos que sabem’ de forma que os outros não têm necessidade de utilizar a atitude abstrata. Assim, sua vida normal é o resultado de ambos: o comportamento abstrato e concreto de indivíduos diferentes. Por que isto é assim não será discutido aqui. … Levar em conta isto é particularmente importante, pela revelação que é desnecessária a hipótese de uma inferioridade mental, que uma investigação cuidadosa prova não existir” (idem, p. 19-20).

A clareza me parece contundente. Dá até a impressão de que Goldstein está falando da realidade brasileira! Uma realidade composta por alguns “que sabem”, e que insistem que por muito tempo saberão, e por muitos “que não sabem”. Este é um dos aspectos da precária auto-regulação do organismo social brasileiro.

Kurt Lewin (1890-1947) foi um psicólogo alemão que por bom tempo trabalhou associado a Max Wertheimer e Wolfgang Köhler, expoentes da Psicologia da Gestalt. À semelhança de Goldstein, teve carreira meteórica e também imigrou para os Estados Unidos devido ao nazismo, ocupando rapidamente Importantes cargos em Universidades.

Sustentou a aplicação de sua Teoria de Campo a todos os ramos da Psicologia. A questões relativas ao comportamento infantil, adolescência, deficiência mental, problemas de grupos minoritários, diferenças caracteriológicas dos povos e dinâmica de grupo. Segundo Hall & Lindzey (1973, p 235),

“À semelhança de muitos outros teóricos da personalidade, Lewin não era um pensador fechado em uma torre de marfim, com as costas voltadas para os problemas da sociedade. Homem de espírito humanitário e democrático, procurou diretamente solução para alguns problemas do mundo atual, dedicando-se, para isso, à investigação conhecida como pesquisa de ação. A pesquisa de ação tem por objetivo a mudança de condições sociais”. (N. do A.: acredito tratar-se aqui de um problema de tradução. Pesquisa de ação = pesquização ou pesquisa participativa)

A seguir apresento uma citação de Lewin que escolhi por dar claramente uma possibilidade de ação, e na qual utiliza o termo reeducação, em minha opinião também com o sentido de terapia.

“Em toda situação, não podemos deixar de agir de acordo com o campo que percebemos; e nossa percepção se estende a dois aspectos diferentes desse campo. Um tem a ver com fatos, outro com valores.

Quando agarramos um objeto, o movimento de nossa mão é dirigido pela posição em que o percebemos em nossa vizinhança igualmente percebida. Da mesma forma, nossas ações sociais são orientadas pela posição em que nos percebemos a nós e aos outros. A tarefa básica da reeducação, portanto, pode ser considerada a de alterar a percepção social do indivíduo. Unicamente por meio dessa mudança da percepção social é que é possível realizar mudanças da ação social do indivíduo” (Lewin, 1973, p. 77)

Aqui Lewin nos dá claras indicações de que parte das potenciais ações sociais pode ser ativada através da educação. Uma vez que concebo a díade educação-terapia como uma polaridade, a reeducação da qual Lewin fala certamente pode se dar também no âmbito psicoterapêutico e em todas as atividades e atribuições profissionais que um psicólogo possa vir a desenvolver.

Martin Buber (1878-1965) foi um estudioso multifacetado, tendo suas áreas de interesse sido Filosofia, História da Arte, Antropologia, Psiquiatria, Sociologia e o Judaísmo. Extremamente ativo, Buber teve participação em vários grupos que tratavam de questões de seu interesse, tendo sempre se destacado em suas atividades. Uma de suas questões centrais era a relação com o próximo. E isto não só em termos da Dialogia que propõe, conhecida mais em termos individuais na forma das palavras-conceito Eu-Tu e Eu-Isso, mas em termos de que estes tipos de relação pudessem ser difundidos e também aplicados em termos sociais, vide seu trabalho em prol da comunidade judaica e de sua relação com outras comunidades. Enfim, basta ler sua biografia para compreender sua preocupação com o social. De acordo com von Zuben (in Buber, s/d, p XVII), Buber

“via sua missão como uma resposta à vocação que havia recebido: a de levar os homens a descobrirem a realidade vital de suas existências e a abrirem os olhos para a situação concreta que estavam vivendo”.

Ainda segundo von Zuben (in Buber, s/d, p LXVIII),

“No âmbito da política, o âmago da mensagem buberiana baseava-se no desejo de comunidade, apresentando a possibilidade para o seu povo de realizar topicamente a verdadeira utopia. O seu socialismo utópico repousava sobre uma verdadeira metafísica da amizade, do encontro dialógico”.

Para mim, não há nada mais característico para definir a franca maioria das relações sociais nos tempos atuais, que inimizade – sob a forma de desconfiança – e interesse. E isto me parece ser decorrência do fato de que grande parte das pessoas busca sua segurança naquilo que é material, palpável, tangível, e não numa fé em si próprio e nos outros. Acredito que esta é uma das leituras possíveis do mundo atual: o outro como inimigo, meu concorrente, pois pode me tirar o que é material, por conseguinte minha segurança. Porisso ajo pautado no interesse. A crescente busca de valores espirituais e de espiritualidade, parecem ser uma resposta a este fenômeno. Mas o perigo está à espreita: indivíduos de má-fé se utilizam disto de forma interesseira.

Por fim, uma citação de Buber (in Amatuzzi, 1989, p. 43):

“O homem é antropologicamente existente, não no seu isolamento, mas na integridade da relação entre homem e homem: é somente a reciprocidade da ação que possibilita a compreensão adequada da natureza humana”.

Paul Goodman (1911-1972) é certamente o nome mais controvertido entre os grandes nomes da Gestalt e, acredito, ao lado de Laura Perls, sua síntese mais perfeita. Em termos sociais e políticos, nada é tão significativo na Gestalt quanto a sua contribuição. Num livro extremamente interessante e contundente, Stefan Blankertz (1988) faz um apanhado da vida e da obra de Goodman.

Primeiramente a história de Goodman. Nascido em Greenwich Village, New York, em 1911, de descendência judaica, teve infância e adolescência muito difíceis, formando-se em Literatura e Filosofia. Graças à sua grande erudição e competência, conseguiu trabalho em afamadas instituições de ensino. Foi, no entanto, demitido delas devido ao fato de ser homossexual. Na realidade, era bissexual. Em parte devido a estas demissões, tornou-se um árduo crítico de instituições sociais e fervoroso defensor de minorias. Foi casado, teve três filhos, sendo uma grande marca em sua vida, a morte do filho mais velho num acidente automobilístico.

Escreveu muitas obras, sempre publicadas apenas por pequenos editores. Dedicou-se ao estudo de História, Antropologia, Pedagogia, Economia, e Psicologia. Escreveu em parceria com seu irmão Percival, que era arquiteto, um livro sobre urbanismo e qualidade de vida (Goodman & Goodman, 1990). Depois de conhecer e trabalhar com Perls, dedicou-se também à prática psicoterapêutica, e foi se tornando mais conhecido. A partir da edição de seu livro “Growing Up Absurd” (1956), em que critica duramente o sistema educacional norte-americano, vai se tornando mais e mais popular, chegando a se tornar uma espécie de guru da juventude norte-americana contra o “establishment”. Até sua morte, em 1972, teve uma vida extremamente conturbada com muitos altos e baixos. Fica a impressão de ter sido um visionário, um sonhador, que apesar dos golpes recebidos nunca deixou de acreditar que aquilo que ocorria à sua volta poderia ser diferente. O que de fato ocorreu, talvez não na escala por ele esperada.

Uma das grandes lições deixadas por Goodman parece ser o inconformismo com que se apresentava e o não esmorecimento frente às dificuldades encontradas – fatores certamente necessários para aqueles que têm críticas políticas e sociais e que queiram dar sua contribuição para que algo se modifique. É lutar por algo no que se acredita, com ciência de que a vitória nesta luta é o produto final que se alcança, e não efêmeras sensações de vitórias episódicas. É lutar por um legado, por uma marca que se deixe no mundo, na história, independentemente da atividade à qual o lutador se dedique.

Absolutamente coerente com suas idéias e sentimentos, Goodman propõe o seu pragmatismo crítico.

“O cerne da crítica de Goodman, está indissoluvelmente ligado à sua história de vida. A crítica social nos escritos de Goodman é pragmática em duplo sentido: criada por razões pragmáticas – isto é, a propósito de um agudo debate político, no qual Goodman considerava ter que interferir no sentido de seu próprio bem estar e também em prol do bem estar dos outros cidadãos – e composta com um objetivo pragmático – isto é, com um desejo de imediata efetividade sobre o seu próximo” (BLANKERTZ, 1988, p. 9).

Em termos de ação, o pragmatismo crítico significa uma ação tão imediata quanto possível, não que impensada, mas que não fica procurando as origens e razões de determinado fato. Atua sobre ele, na firme convicção de que isto levará a uma reorganização do sistema, mexendo, assim, inclusive com suas origens, com fé no fato de que tudo que é vivo é capaz de se re-organizar, se re-equilibrar. É nítida a inspiração anarquista de seu pragmatismo crítico. À respeito disto, diz Goodman:

“Freqüentemente sou questionado por estudantes radicais sobre o que estou tentando fazer com minha forma utópica de pensar e inventar alternativas; talvez o uso do intelecto sirva para ajudar a transformar revolta e confusão (“riot”, no original inglês) em desordem criativa” (Goodman in Blankertz, 1988, p 15).

Por fim, uma citação de Goodman, tirada de Communitas, o livro escrito em parceria com o irmão, em que fala sobre padrão de vida:

“Não seria uma coisa pequena para as pessoas, compreender claramente que a pobreza é um padrão social universal, e que não deve ser entendida em termos de miséria ou de casos de desventura.

O padrão de subsistência que descrevemos está, com certeza, muito acima daquele em que a maioria das espécies humanas de fato subsiste; contudo, ele está fundamentado em condições fisiológicas, higiênicas, climáticas e morais e não é uma ilusão cultural paroquial, promovida por homens de vendas, como o Padrão de Vida Americano. A awareness profunda destes padrões, ajudaria a banir dos cidadãos americanos a atitude que têm em relação a outras pessoas, a de considerá-las como se não fossem humanas (Goodman & Goodman, 1990, p 217).

Awareness é uma palavra chave. E está ao nosso alcance promover junto às pessoas das quais estamos próximos a awareness daqueles que são diferentes de nós. Diferentes por qualquer razão, por raça, credo, doença, uso de drogas, atividades excusas, sexualidade e/ou status econômico ou social. À medida que estes grupos se fecham em si, seja por seus membros se acharem melhores que os outros, seja por resposta ao rechaço de outros grupos, rompe-se o diálogo entre os diversos segmentos sociais e têm início os problemas sociais. É o rompimento da Dialogia Social. É difícil para mim imaginar algo mais agressivo que ter minha existência negada, desconfirmada, ou usada para fins com os quais não estou de acordo.

Voltando à citação de Goldstein, é bom que Eu e Tu façamos parte “daqueles que sabem” e não apenas façamos de conta que somos parte deste grupo, quando na realidade somos do grupo “dos que não sabem”, do grupo que é tutelado. Pois sabendo, estaremos em condições de ajudar “os que não sabem” a saberem.

Ainda em termos da citação de Goldstein, quando diz que “Levar em conta isto é particularmente importante, pela revelação que é desnecessária a hipótese de uma inferioridade mental, que uma investigação cuidadosa prova não existir”, e em termos do rompimento da Dialogia Social, fico me perguntando o quanto poderíamos “despatologizar” muitos cidadãos, na medida que lhes fosse restituído o direito à Dialogia Social, forma de ampliar suas fronteiras e (re)inserí-los no mundo comum aos outros cidadãos.

Acredito que é preciso interferir no mundo de forma clara, de posse de uma visão de homem clara, com convicções políticas claras. Acredito na necessidade de sermos pragmáticos críticos, pensando em termos de Goodman. E isto enquanto cidadãos e profissionais. Viver nem sempre é confortável. Mas é o desconforto do desequilíbrio que nos fará buscar o equilíbrio através de mudanças. É bom que nos desequilibremos, ou seja, é bom que nos deixemos tocar.

Nos termos de Goodman, acredito que já temos revolta e confusão suficientes para instaurarmos uma desordem criativa. Não estou propondo aqui uma revolução, um grande movimento social, nem meu discursos pretende ser incendiário. Entendo a desordem criativa como nosso desatrelamento das verdades históricas, dos paradigmas inquestionáveis, daquilo que nos é imposto. Falta Dialogia entre a história passada e a atual. Não há dúvida que a história nos dá grandes lições e é extremamente rica em exemplos, idéias e conceitos. Mas é preciso questioná-los quanto à sua validade, se já não expirou seu prazo de efetividade. Ou seja, é desejável que consigamos ir além do que concebe nosso Zeitgeist – o espírito de nosso tempo, como o fizeram Smuts, Goldstein, Lewin, Buber, Goodman e o casal Perls – nem que seja apenas um pouco. E isto nada mais é que a proposta de Robert Jungk, afamado e respeitado estudioso do futuro. É preciso fantasiar, é preciso que procuremos, com crítica, sermos visionários. É preciso que constantemente questionemos e atualizemos nossa ética. Uma ética caduca é paralisante, deixa de ser funcional. Um exemplo de velharia é a dicotomia educação-terapia.

As questões do homem contemporâneo mudaram, consequentemente as práticas psicoterapêuticas também estão tendo que mudar sua ótica individualizada – e o Zeitgeist individualista dos últimos tempo é talvez o grande responsável pela não leitura de conteúdos sociais da Gestalt – para uma ótica mais social que contemple estas novas questões do homem com respostas igualmente novas. Estas mudanças implicam em que mexamos com valores individuais e sociais.

Vejo a Gestalt como um excelente e fascinante instrumento para pensar o indivíduo e a questão social. Em seu bojo estão uma sólida visão de homem e um sólido posicionamento político. Ela me serve de referência. Tenho uma relação Eu-Tu com ela. Eu a considero um excelente crivo, uma excelente e abrangente perspectiva filosófica, pelo qual faço passar aquilo que tenciono sejam minhas ações. Se as ações passarem pelo crivo, são boas; senão procuro outras. Isto tem por conseqüência Eu não precisar de uma técnica específica, ela vai sendo criada na medida de minhas necessidades e Eu posso aplicá-la a uma infinidade de situações. Com ela não fico restrito somente a intervenções terapêuticas na assepsia do meu consultório. Ela me dá liberdade de intervir numa gama enorme de situações. Posso trabalhar onde quer que haja relações humanas. Psicólogos, Pedagogos, Médicos, enfim, todos os profissionais de saúde/educação são, em minha opinião, por excelência os profissionais das relações humanas. Saúde/educação é para mim uma unidade, não um binômio; uma unidade que visa um cidadão saudável.

Certa vez, conversando com um amigo sobre estas questões, nos chamou a atenção o fato de que todos os nomes de gestaltistas até aqui citados pertencem a minorias. Será que é preciso pertencer a minorias para ter sensibilidade com a questão social, com o que é diferente de mim? De alguma forma isto parece fazer sentido. Afinal, estar imerso num universo de iguais não é exatamente propiciador de awareness sobre as diferenças, sobre a dor do universo vizinho. Me responsabilizo só pela manutenção do meu universo. Como se o que ocorre no universo ao lado não afeta também o meu. Será que é preciso experienciar algum tipo de rechaço para que esta luz se acenda?

Me chama a atenção o fato de que o tema social está presente em toda a literatura gestáltica, só que de forma um tanto escamoteada. Convido-te a uma (re)leitura desta literatura, em que fiques bem atento às entrelinhas sociais. Comece por Gestalt-Therapy de Perls, Hefferline e Goodman!

Peço-te, que não me tornes conhecido por pendurar a palavra social em conceitos alheios, como, por exemplo, Dialogia Social, Organismo Social ou Ecologia Social. Tenho dúvidas quanto a pertinência e aplicabilidade destes conceitos; mas eles me ajudam a realçar (alçar de novo) a um plano de relevância, idéias e conceitos importantes perdidos nas entrelinhas.

Minha idéia com este trabalho, foi justamente a de realçar estas idéias e mostrar que o social está presente na Gestalt desde seu início, e que é parte substantiva desta abordagem. E de que entendo política como a luta para que o suprimento das necessidades humanas seja privilégio da maioria – se possível, de todos – e, que para isto, é necessário que tenhamos uma clara e sólida visão de homem. O apoliticismo é uma falácia, via de regra com consequências funestas.

Ainda uma palavra sobre a fé. Precisamos ter fé em nós mesmos, precisamos acreditar que somos capazes de tornar nossos anseios realidade. Um ato de criação, um ato de mágica transcendência do material, do concreto. Joseph Zinker consegue falar disto de forma magistral (Zinker, 1991, p. 12)

“A criatividade é a celebração de nossa própria grandeza, o sentimento de que podemos fazer qualquer coisa que se torne possível. É uma celebração da vida, minha celebração da vida. É uma afirmação ardente: Estou aqui! Amo a vida! Me amo! Posso ser tudo! Posso fazer tudo!

A criatividade não é somente o conceito, senão o ato em si; a realização do que é urgente, do que necessita ser afirmado. Não é somente a afirmação do espectro total da experiência e sentimento de unidade de cada pessoa, mas também um ato social, um compartilhar com nossos semelhantes esta celebração, esta afirmação de viver uma vida plena.

A criatividade é a expressão da presença de Deus em minhas mãos, olhos, cérebro: em todo o meu ser. A criação é a afirmação que cada indivíduo faz de sua devoção, do seu transcender a luta diária pela sobrevivência e o peso da mortalidade: um grito de angústia e celebração.

A criatividade é a ruptura de limites, a afirmação da vida além da vida, a vida movendo-se para além de si própria. Devido ao seu próprio sentido de integridade, a vida nos pede que afirmemos nossa natureza intrínseca, nossa essência como seres humanos.

Finalmente, a criatividade é um ato de valentia. Estabelece: Estou disposto a arriscar-me ao ridículo e ao fracasso para poder experimentar este dia com novidade e frescor. Aquele que se atreve a criar, a transpor limites, não só participa de um milagre, mas chega a descobrir que em seu processo de ser, ele é um milagre”.

Quanto ao título deste trabalho. Gestalt – Resgatando Fronteiras ou Em Busca das Respostas Perdidas, espero ter podido contribuir com o resgate das fronteiras da questão social. Afinal, é na fronteira que se dá o contato! E isto com a esperança de que esta fala sirva para que sejam encontradas respostas que se perderam no tempo. A Gestalt implica num posicionamento político sim, ela tem propostas para o social sim. Estar no mundo per si implica em influenciar o universo. Então, porque não influenciá-lo de maneira a que fique mais aprazível para mim e para meu próximo?

Muito obrigado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Amatuzzi, M.M.; (1989) O Resgate da Fala Autêntica. Campinas: Papirus

Blankertz, S.; (1988) Der Kritische Pragmatismus Paul Goodmans. Köln: Edition Humanistische Psychologie

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Clarkson, P.;Mackewn, J.; (1993) Fritz Perls. London: Sage Publications

Goldstein, K.; (1996) The Organism. New York: Zone Books

Goodman, P.; Goodman, P.; (1990) Communitas. New York: Columbia University Press

Hall, C.S.; Lindzey, G.; (1973) Teorias de Personalidade. São Paulo: E.P.U.

Lewin, K; (1973) Problemas de Dinâmica de Grupo. São Paulo: Cultrix

Lilienthal, L.A.; (1995) Aprender é descobrir que algo é possível, apresentado na plenária “A Abordagem Gestáltica Aplicada à Educação”. Anais do “V Encontro Nacional de Gestalt-terapia, Vitória, ES, setembro/95, s/p

Lilienthal, L.A.; (1997) A Gestaltpedagogia sai às Ruas para trabalhar com Crianças e Educadores de Rua. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Dissertação de Mestrado.

Perls, F.S.; Hefferline, R.; Goodman, P.; (1991) Gestalttherapie – Praxis. München: dtv/Klett-Cotta

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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

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Haken, H.; (1990) Erfolgsgeheimnisse der Natur. Frankfurt Ullstein

Jungk, R.; (1990) Die Zukunft hat schon begonnen. München: Wilhelm Heine Verlag

Perls, L.; (1989) Leben an der Grenze. Köln: Edition Humanistsiche Psychologie

Perls, L.; (1997) Der Weg zur Gestalttherapie. Köln: Peter Hammer Verlag

Smuts, J.; (1996) Holism and Evolution. Highland: The Gestalt Journal Press

NOTA: A tradução de todas as citações em língua estrangeira constantes neste trabalho, foram feitas para o português pelo autor do mesmo. 

Desde 2001 desenvolvendo o saber em Gestalt-Terapia