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Em que Acreditamos? (Selma Ciornai)

publicado em 09.05.2017 por anapaula

Em que acreditamos? 

Mesa Redonda apresentada no II Encontro Nacional de Gestalt-terapia, 1989. 
Este artigo foi publicado no Gestalt-terapia Jornal, editado pelo Centro de Estudos de Gestalt do Paraná, 1990. Como esta edição está esgotada, e acreditamos ser este um texto ainda atual por tratar de temas que são referência para a Gestalt-terapia, decidimos publicá-lo para que a comunidade gestáltica possa a ele ter acesso.

Selma Ciornai

Quero iniciar esta exposição assinalando aspectos da visão de homem no mundo inerentes à Gestalt-terapia, e que desde os primeiros contatos que com ela tive me atraíram, e com os quais me identifico afetiva e ideologicamente.

O primeiro deles tem a ver com suas raízes existenciais, no respeito à dignidade intrínseca do ser humano, na fé na sua possibilidade de transcendência de seus limites e condicionamentos, mesmo em face das condições mais inóspitas, e mesmo em face de suas manifestações mais tenebrosas, medíocres e virulentas, como aponta com dureza e amargor, porém não sem fé, Wilhelm Reich em seu famoso “Escuta Zé Ninguém” (1).

A visão existencial afirma a capacidade humana de escolher seu próprio destino, mesmo quando as opções reais são limitadas, afirmando que o homem está sempre em possível estado de refazer-se, de escolher e de organizar sua própria existência. Nas palavras de Sartre, o homem só tem que se submeter a quatro condenações: a nascer, a morrer, a ser social e a ser livre.

Lendo o livro “Gestalt-Terapia: Excitação e Crescimento na Personalidade Humana” (2) de Perls, Hefferline e Goodman, é impossível deixar de se impressionar com a dimensão estética que esta fundamentação existencial toma em seus escritos, e que impregna toda sua obra, no sentido dos constantes paralelos traçados entre processos artísticos e criativos e o funcionamento humano saudável, entre arte e terapia.

Tanto na arte como na terapia se manifesta a capacidade humana de perceber, figurar e reconfigurar suas relações consigo, com os outros e com o mundo, retirando a experiência humana da corrente rotineira e por vezes automática do cotidiano, colocando-a sob luzes novas, estabelecendo novas relações entre seus elementos, misturando o velho com o novo, o conhecido com o sonhado, o temido com o vislumbrado, trazendo assim novas integrações, possibilidades e crescimento. Esta afirmação da centelha de divino em cada um de nós, esta fé na capacidade humana de ser o artista de sua própria existência, ou, nas palavras de Paulo Coelho (3) “o alquimista de sua própria vida”, está encunhada no pensamento gestáltico.

Outro aspecto deste paralelo constantemente traçado que julgo importante ressaltar, tem a ver com o fato de que, se a arte tradicionalmente sempre esteve na vanguarda dos movimentos de ruptura e transformações sociais, a Gestalt-terapia floresceu com uma ideologia libertária no bojo dos movimentos contestatórios e visionários dos anos 60, onde, face à promessa e à esperança de um tempo messiânico no ar – tanto os Perls como Goodman se encontraram fortemente engajados.

Theodore Roszak, um dos mais conhecidos historiadores dos movimentos dos anos 60, em seu livro “A Formação da Contracultura” (4), dedica um capítulo inteiro a Goodman, entitulado “A Sociologia Utópica de Paul Goodman”, onde o situa como um dos autores mais importantes e que mais influenciaram o pensamento da época, citando sua contribuição no livro “Gestalt-Terapia” acima citado, como sua obra mais importante. Apesar de estarmos hoje em outra época e podermos ver este período sob outras perspectivas, creio que ignorar esta característica da Gestalt-terapia seria, de certa forma, desfigurá-la.

Enraizando-se também na Fenomenologia e nos princípios da Psicologia da Gestalt, a Gestalt-terapia concebe então o indivíduo como um ser relacional, como um ser em processo, afirmando a indivisibilidade do campo organismo-meio, onde ambas as partes do sistema crescem e se desenvolvem numa perene relação de troca dialética.

Na prática terapêutica, esta visão de homem-no-mundo define uma postura filosófica que vai nos servir de pano de fundo e esteio para nosso trabalho. No entanto, quando um cliente nos procura, está em geral com algum tipo de sofrimento psíquico, por mais nebuloso e indefinido que seja, com o qual não está conseguindo lidar satisfatoriamente. Mesmo quando a justificativa da procura é algo como “querer conhecer-se melhor”, há sempre presente uma certa sensação de que há algo entravado, algo que não desabrochou, uma certa sensação de que a vida poderia ser mais plena e feliz, um movimento em procura da ajuda de um outro. É portanto necessário, além desta visão de homem-no-mundo, um modelo teórico de saúde e doença, de funcionamento saudável e não saudável, enfim, um modelo terapêutico coerente com nossa postura filosófica, no qual possamos embasar nossa compreensão clínica, e do qual possam resultar nossos métodos e práticas.

Como hoje em dia o alcance e a abrangência da Gestalt-terapia estão sendo profusamente questionados, acho importante recapitular e resgatar o que nos oferece nesta direção a literatura clássica da Gestalt-terapia, para a partir disto podermos criticar, elaborar, desenvolver e eventualmente acrescentar. É o que me proponho a fazer a seguir.

O indivíduo é visto então como um sistema aberto, em constante relação de troca com seu ambiente. Desejos e necessidades da pessoa assumem dominâncias que são o movimento de uma tensão de se destacar proeminentemente formando uma figura, i.e., uma gestalt que vai mobilizar a energia do organismo para sua completude. Dominâncias espontâneas são frutos da sabedoria intrínseca do organismo sobre suas necessidades. Quando estes processos requerem recursos do meio para sua realização, estas figuras despontam na consciência mobilizando as funções de contato do organismo, que são o instrumental que o indivíduo dispõe para ir ao encontro, sentir, avaliar e selecionar o que se encontra à sua volta.

O indivíduo organiza estas experiências de forma que orientem o tipo de contato que estabelece. Todo contato é criativo, pois lida com o novo, e o indivíduo idealmente cresce e se desenvolve assimilando o que o enriquece e nutre, alienando de si o que lhe é tóxico, respondendo às requisições, exigências e convites do meio, num contínuo processo de ajustamento criativo. A totalidade deste processo chama-se auto-regulação organísmica. Quando este processo se dá satisfatoriamente, as gestalts já completas saem da consciência dando lugar à emergência de novas figuras, num processo contínuo e vital de formação e destruição de figura-fundo. O que vai facilitar a resolução e a emergência de novas figuras e portanto energizar esse fluxo vital são os processos de awareness. Para Perls, awareness é a irmã gêmea da atenção, porém mais difusa do que a atenção por implicar em uma percepção relaxada (5); já Gary Yontef define awareness como uma forma de experienciar, como o processo de estar em contato vigilante com os eventos mais importantes do campo organismo-meio, com suporte sensório-motor, emocional, cognitivo e energético (6). É no processo de awareness que o indivíduo aguça e percebe, tanto os seus sentidos, como as relações de significado que estabelece entre eles, que tanta experiência, como percebe a forma com que organiza suas experiências, e é por isso que processos contínuos de awareness são sempre acompanhados de novas in-formações, i.e., a formação de figuras que criam um novo saber.

A partir deste arcabouço conceitual, funcionamento saudável é visto como o fluxo pleno, contínuo e energizado de awareness e formação figural, no qual, através de fronteiras permeáveis e flexíveis, o indivíduo possa interagir criativamente com seu meio ambiente, desenvolvendo sensibilidade e recursos para reconhecer e responder às dominâncias espontâneas que se lhe afigurem, e usando suas funções de contato para avaliar e apropriadamente atuar as possibilidades de contatos mutuamente enriquecedores e satisfatórios, e de interrompê-los, quando tóxicos e intoleráveis. Saúde seria então a prevalência e relativa constância deste tipo de funcionamento.

Em contrapartida, funcionamento não saudável vai ser o funcionamento caracterizado por interrupções, inibições e obstruções destes processos, com a conseqüente formação de figuras fracas, confusas, que ao não se completarem vão dificultando progressivamente as possibilidades de contatos vitalizados e vitalizantes com o presente. Doenças e patologia seriam então a recorrência crônica deste tipo de funcionamento, com a conseqüente cristalização das dificuldades do indivíduo e empobrecimento de seus contatos com o mundo. Como se explica isto?

Em “Maturação e Recordações da Infância”, Perls, Hefferline e Goodman (2) falam das situações passadas não resolvidas, i.e., gestalts incompletas, que ficam como formas fixas no presente, obstruindo o fluxo livre e criativo de percepção e resposta às situações novas. Da mesma forma defesas criativamente elaboradas no passado em resposta a avaliações acuradas de situações reais, ao se repetirem automaticamente, colocam o organismo em permanente estado de prontidão, obstruindo o fluxo de sentir.

As situações inacabadas e as defesas cristalizadas ficam no organismo fazendo com que situações e recursos sejam avaliados a partir de parâmetros ligados a elas, e é a esta avaliação, i.e., a esta awareness distorcida da situação atual que a auto regulação do indivíduo responde.

Portanto, para nós terapeutas, as discrepâncias entre as reações do cliente e a situação real vivida na relação terapêutica vai ser indicativa de que há algo que não pertence à situação atual que está presente. Os autores apontam que há um infeliz circularidade nestes processos, pois ao mesmo tempo que as situações inacabadas pressionam por resolução cada vez que a tensão se acumula, é só por processos bem sucedidos de formação e destruição de figura-fundo que o indivíduo adquire experiência e recursos mais elaborados que irão lhe proporcionar suporte para arriscar lidar com a ansiedade que situações novas sempre apresentam.

O objetivo terapêutico vai ser então a grosso modo, o de trabalhar em direção à constante expansão de awareness, facilitando, através do suporte da relação terapêutica, novas figurações, novas integrações, a liberação das energias retidas em situações inacabadas, e a compreensão e eventual reformulação dos padrões de relacionamento do indivíduo consigo próprio, com os outros e com o mundo a fim de lhe possibilitar contatos mais nutritivos e enriquecedores.

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Até aqui minha compreensão do que se explicita na literatura clássica da Gestalt-terapia. Gostaria de poder compartilhar agora com vocês minhas buscas, dúvidas e elaborações atuais, tanto em relação à propriedade deste modelo quanto em relação à sua abrangência.

Quanto à sua propriedade, Therese Tellegen em seu livro “Gestalt e Grupos” (7), levanta três questões que me parecem importantes. Primeiro, se a noção de Gestalt diferenciando-se em figura e fundo é uma metáfora descritiva válida para descrever a complexidade humana. Penso a esse respeito, que a noção de figura, no sentido mesmo de uma figura, um retângulo, uma necessidade, etc., deveria ser vista numa concepção sistêmica, como uma unidade configuracional, ou seja, como a unidade de todas as figuras que despontam concomitantemente formando a presente configuração existencial do indivíduo, complexa, pulsante e dinâmica.

A segunda questão levantada por Therese é em relação ao termo “necessidade” que originado de um modelo biológico, é estendido à esfera do psicológico de maneira muito simplista. Suas subsequentes elaborações a este respeito constituem uma contribuição significativa para nossos atuais questionamentos sobre a possibilidade de reconfigurar certos aspectos de nosso referencial teórico (*).

E a terceira questão que levanta é se o modelo chega a elucidar o que Perls deseja, que é precisamente a interação dos fatores físicos, biológicos, psíquicos e sócio-culturais, ao que propõe uma perspectiva sistêmica.

Quanto à abrangência do modelo, tenho sentido necessidade de uma compreensão mais elaborada dos entraves e dificuldades dos meus clientes, no sentido de poder melhor compreender a maneira particular de como se configuram e se articulam os padrões de relacionamento, como organizam as experiências e estabelecem relações de significado entre elas.

Perls, Hefferline e Goodman tentam elaborar uma tipologia descritiva dos padrões recorrentes de interrupções nos ciclos de contato (projeção, introjeção, retroflexão etc), que me parece precisa ser melhor estudada, especialmente dentro de uma perspectiva relacional.

No entanto, se um estudo mais amplo deste material me parece necessário, por outro lado não me parece suficiente. Tenho encontrado em alguns autores de teorias de relações objetais, elementos que têm enriquecido muito minha compreensão dos clientes, tornando meu trabalho terapêutico mais profundo, mais cuidadoso, na medida em que reconheço características descritas por estes autores. Neste sentido, discussões acaloradas têm surgido na comunidade gestáltica sobre a propriedade de integrar perspectivas psicanalíticas e diagnosticas em Gestalt-terapia.

Gostaria de fazer três comentários a este respeito:

1) Na realidade, o conceito de “outro internalizado” de “partes de outro” ou do “ideal do outro” internalizado não são estranhos à Gestalt-terapia. Quando por exemplo, se sugere ao cliente que atue um diálogo com a figura imaginada do pai, evidentemente não é o pai real que está em questão. O que a meu ver essas teorias trazem de importante, é uma compreensão mais articulada da função destas imagens internalizadas no desenvolvimento de cada um.

2) Acredito que postura fenomenológica não é a não utilização de mapas, mas a atitude com que com eles me relaciono. O terapeuta flui do “nada além que processo” do vivido na relação, para momentos de reflexão sobre este vivido. Como o compromisso do terapeuta é com o cliente e não com este ou aquele mapa, a compreensão adquirida vai ser continuamente testada e reformulada no processo da relação. **

3) A questão filosófica e epistemológica da dicotomia entre essência e processo que permeia a maioria destes debates levou-me a sugerir que esta dicotomia seja transcendida por uma visão de que toda essência está em processo assim como todo processo tem uma essência (**). (Traçando um paralelo, na Física Moderna a luz não é mais vista como ora partícula e ora onda, mas como ambas concomitantemente).

Assim, creio que quando existe a recorrência de um padrão de relacionamento humano, compreender sua fenomenologia não é só reconhecê-lo como um comportamento retroflexivo por exemplo, mas desvelar suas relações com as gestalts inacabadas, com as gestalts ocultas do indivíduo, reconhecendo e compreendendo relações de significado, e neste sentido, poder vê-lo sob a luz do que Guntrip denomina de caráter esquizóide por exemplo, pode nos ajudar a uma compreensão mais abrangente de seus processos e do seu existir.

Finalmente, contrapondo esta busca de uma compreensão mais profunda e articulada dos processos internos de cada um, meu interesse tem ido também para um outro lado, que tem a ver com a tão referida unidade figura-fundo, organismo-meio que, se teoricamente engloba tudo o que existe no universo, na prática do trabalho terapêutico tem sido reduzida aos processos internos do indivíduo, ou às relações entre indivíduo e seus outros significantes, e em raros casos , ao seu contexto social.

Estamos vivendo uma época onde a visão holística vai se espalhando através dos movimentos ecológicos, onde o indivíduo vai progressivamente se vendo realmente parte de sistemas mais amplos sem os quais não pode sobreviver e sem os quais sua existência não tem fundamento. Portanto, quando falamos de fundo, a que fundo nos referimos? Aonde delimitamos a linha demarcatória no sistema total esotéricamente chamado de “Tudo o que há” que circunscreva o limite do sub-sistema que vamos estudar?

Em 1969, Theodore Roszak escreveu que “A Gestalt-terapia faz um esforço para integrar a tradição psicanalítica com a sensibilidade do misticismo oriental com sua noção de holismo, e ironicamente coloca que a Gesltalt-terapia é fundamentalmente uma espécie de Taoismo disfarçado de maneira incômoda em uma psiquiatria ocidental.” (4)

Anos 60 passados, a verdade é que tanto a física moderna, as filosofias orientais como a abordagem dialógica de Martin Buber (que se fundamental no pensamento teológico judaico) falam da unidade de todas as coisas, da importância de nos redescobrirmos como manifestação da energia universal, e desta forma redescobrirmos nossas ligações com os ventos, as estrelas, as marés, a natureza, estendendo nossa awareness para além de nossos limites pessoais, ampliando nosso sentido de fronteiras para onde “eu sou eu mas também sou tu, e tu és tu mas tu também sois eu”.

Este tem sido um caminho de busca pessoal que tem me enriquecido muito, ampliando minha sensação de ligação com as pessoas e as coisas do mundo. Tenho eventualmente inserido esta visão em meus trabalhos com clientes individuais ou grupos, o que tem facilitado um sentido de expansão e ampliação, ajudando a relaxar amarras e sofrimento individuais que restringem nossas possibilidades de plenitude.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1) REICH, Wilhelm- Escuta Zé Ninguém. Livraria Martins Fontes, Santos, SP.

(2) PERLS, Frederick S., HEFFERLINE, Ralph & GOODMAN, Paul : Gestalt Therapy: Excitement and Growth in the Human Personality. Nova York, Dell Publ.Co, 1951.

(3) COELHO, Paulo. O Alquimista. Editora Rocco Ltda., Rio de Janeiro, 1988.

(4) ROSZAK, Theodore. The Making of a Counter Culture: Reflections on the Technocratic Society and its Youthful Opposition. Anchor Books, Boubleday & Co .Inc, Garden City, N. Y., 1969 (Cap VI)

(5) PERLS, Frederick S. The Gestalt Approach and Eye Witness to Therapy. Science and Behavior Books, 1973, pg. 10

(6) YONTEF, Gary . Gestalt Therapy: Clinical Phenomenology. In The Gestalt Journal, Spring 1979, pg. 29 .

(7) TELLEGEN, Therese A . Gestalt e Grupos, Uma Perspectiva Sistêmica . Summus Editora, Ltda., SP, 1984, Cap. IV

(8) CIORNAI, Selma. Gestalt-terapia Hoje: Resgate e Expansão. IV Seminário de Gestalt de SP, 1987. Publicado em Revista de Gestalt I, 5-31, 1991.

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* Therese critica a Gestalt-terapia neste aspecto, escrevendo que “tanto na psicanálise quanto na fenomenologia – suas fontes – as tentativas de elucidar as articulações entre as esferas do biológico, do psíquico e do social são mais elaboradas… Freud traça um caminho do biológico para o psíquico interpondo entre necessidade e objeto de satisfação a noção de representação psíquica … Merleau-Ponty situa vital existencial humana como reestruturando a “re-significando” a ordem vital biológica…”

** Estas posições estão elaboradas mais extensamente no trabalho “Gestalt-terapia Hoje: Resgate e Expansão”, S.P. 1987.

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