Considerando Saudades: Gestalt-terapia de Antes, de Hoje e de Amanhã (Selma Ciornai)
publicado em 09.05.2017 por anapaulaConsiderando Saudades:
Gestalt-terapia de Antes, de Hoje e de Amanhã
Trabalho apresentado em 1995 no V EncontroNacional de Gestalt-terapia, posteriormente publicado no Boletim de Gestalt-terapia do Triângulo Mineiro, I, (2),1996
Sendo o tema desta mesa “Gestalt-terapia: Saber, Ciência, Filosofia e Arte”, creio que fui convidada a dela participar entre outros motivos, por ser conhecida tanto por falar com freqüência sobre o uso de recursos artísticos e expressivos em terapia, quanto pela ênfase que tenho dado às relações entre Gestalt-terapia e Criatividade, entre processos terapêuticos e processo criativos. No Encontro de Gestalt-terapia de Goiânia, fiz uma palestra onde coloquei que estas relações se revelam na Gestalt terapia em três instâncias: na sua fundamentação existencial da visão homem-no-mundo, onde o ser humano é concebido como possível “artista” de sua vida, na sua concepção de funcionamento humano saudável como funcionamento criativo, e na sua metodologia, ou seja, no espaço à criatividade do terapeuta, em termos de técnicas e recursos usados.
Esta palestra está publicada na revista que o grupo está lançando aqui neste Encontro, portanto não vou me repetir, mas gostaria de iniciar esta fala com o que ficou rondando na minha cabeça após ter escrito aquela palestra. Ao mencionar a criatividade do terapeuta, não pude me impedir de considerar que a Gestalt terapia que tenho visto, quando em minhas aulas peço aos alunos que trabalhem uns com os outros, que se envolvam em role-playings, ou quando ouço relatos em grupos de supervisão de como trabalham, apesar de várias qualidades, entre elas o cuidado e o acolhimento, me parece bem menos criativa que a Gestalt de antes, que aprendi e vivenciei dos anos 70 a meados dos anos 80 na Califórnia. Esta mesma impressão também se deu em contatos com alunos e ex-alunos em outros locais e regiões em que fui convidada a trabalhar. Assim, “gestalt de antes”, “gestalt de agora”, e quem sabe, a incógnita “gestalt de amanhã” começou a se configurar como tema para esta minha fala, o que de certa forma retoma o tema do meu primeiro trabalho aqui no Brasil, Gestalt Terapia Hoje: Resgate e Expansão sob uma nova ótica, o que, provavelmente, como diria qualquer bom gestaltista, deve ser uma “re-petição” de minhas inquietações internas para chegar a uma gestalt de boa forma.
Dois fatos recentes contribuíram para a emergência deste tema como figura para mim. A passagem de Paolo Quattrini por São Paulo, terapeuta italiano que eu e Miriam Bove Fernandes conhecemos no Congresso Internacional de Gestalt-terapia no México em 93, e convidamos para vir aqui. Paolo teve um encontro com a comunidade gestáltica de São Paulo e dirigiu dois workshops de um dia intensivo cada. Tendo uma fundamentação teórica basicamente semelhante à nossa, o que fez com que ex-alunos que o ouviram se sentissem confirmados em sua formação, seu estilo de trabalho de “hot seat”, cuidadoso, mas também sagaz, solto, cheio de humor e criativo, um estilo “ítalo-californiano” a meu ver, se para alguns teve o cunho de ser realmente uma novidade, para mim trouxe uma certa saudade. Saudade de um tipo de vivência, mas sobretudo saudade de mim nelas.
O outro fato foi ter recebido de presente do Miguel Angel Liello o livro do Claudio Naranjo , “Gestalt Terapia sin Fronteras”, cuja leitura me deixou extremamente emocionada. Emoção pelo reencontro através de suas páginas, com gestaltistas que foram meus professores no Instituto de Gestalt de São Francisco, onde fiz minha formação, como Frank Rubenfeld e Abe Levitsky, com os quais tenho até hoje uma relação afetiva, assim como outros com quem fiz workshops e treinamentos muito especiais, como Richard Price, Richard Olney e Gideon Schwartz. Estar tendo notícias do que estas pessoas que foram importantes na minha vida estão fazendo e pensando me trouxe a emoção de estar recebendo uma carta de alguém próximo que está longe. Mas a emoção deveu-se também ao fato de vê-los reconhecidos e nomeados, em um livro que denuncia o que Naranjo vê como a exclusão e caricatura que tem sido feita tanto da Gestalt terapia Californiana nas publicações e congressos oficiais nos E.U.A., como do próprio trabalho de Perls.
Fiquei pensando então do que realmente tenho saudade. E a primeira discriminação que faço é que na verdade, não é de tudo que eu tenho saudades, e que por outro lado a “gestalt de agora” realça aspectos que não eram realçados então, e que também a partir de referenciais vividos considero valiosos. Saudade do que então?
Não é fácil colocar sensações e percepções não muito claras em palavras, como vocês bem sabem. Escrever isso para mim foi um exercício de awareness, e peço a paciência de vocês se não conseguir me expressar com clareza.
Primeiro: percebo a “Gestalt de antes” que para mim foi a Gestalt que conheci na Califórnia até 83, como mais criativa, mais solta, mais espontânea, mais à vontade no uso de experimentos e recursos expressivos. Por favor não entendam por “experimento” que me refiro necessariamente à promoção de atuações dramáticas ou catárticas. Me refiro sim à sugestão de experimentos, que podem ser até bem sutis, que envolvendo a totalidade do ser de uma pessoa, i.e., o cognitivo, o sensorial, etc, possa lhe trazer, através de uma experiência, algo novo em termos de vivência, percepção ou awareness. Em contrapartida sinto a “gestalt de agora” como característica geral, mais cuidadosa e mais preocupada com o suporte para a relação terapêutica. É bem verdade que conheci na Califórnia tanto terapeutas extremamente afáveis e que primavam por saber estar realmente ali, para o outro, como terapeutas mais ásperos e confrontativos. No entanto isto era uma característica do trabalho de certas pessoas, não uma preocupação que, ao que me parece é o que se passa hoje. Assim, se por um lado vivenciei e testemunhei experiências dolorosas e humilhantes então, que realmente hoje em dia felizmente não vejo acontecer, por outro lado penso que este extremo cuidado, que inclusive eu ensino nos cursos, talvez tenha trazido em seu bojo uma timidez na criatividade, soltura e espontaneidade do terapeuta. Atitudes estas, que talvez possam ser combinadas em uma maneira nova que integre os aspectos mais positivos de ambas.
Aliás, quanto à questão do cuidado, gostaria de pontuar que algo que me impressionou muito bem quando retornei ao Brasil foi a atenção que se dá aqui para a existência ou não de um suporte grupal para o indivíduo e para a percepção de processos grupais, preocupação esta realmente ausente nos trabalhos que conheci então e que, creio eu é uma característica muito positiva da Gestalt terapia brasileira.
Bem, em um segundo aspeto que pude perceber, e do qual tenho saudades, é o que metafórica e intuitivamente me ocorreu denominar de “Gestalt da Esperança”. A Gestalt terapia dos anos 60 ao início dos anos 80 vinha impregnada de um cunho libertador, comum aos movimentos de contracultura da época, do qual a Gestalt terapia fez parte e foi porta-voz, com sua ênfase na possibilidade do indivíduo experimentar e fazer escolhas de formas de ser e de estar contrárias às normas e padrões sociais, com sua ênfase na possibilidade do indivíduo poder se libertar de seus bloqueios internos e de padrões de relacionamento limitadores como forma de expandir suas possibilidades de existência no mundo, e com sua ênfase na importância da experiência direta, como caminho de conhecimento e de transformação.
Esse cunho libertador impregnava tanto as experiências terapêuticas mais superficiais, caracterizadas por propostas de experimentos que a meu ver, olhando em retrospecto, muitas vezes eram uma mera “atuação”, não levavam a nenhum insight, mas que continham em si o tesão de uma experiência nova ( como por exemplo o gosto de arrebentar uma almofada ou dizer algo antes impensável a cada pessoa do grupo), como também impregnava de vitalidade e esperança trabalhos terapêuticos profundos sobre experiências às vezes bastante dolorosas. Sinto saudade dessa energia.
Permito-me contrapor a isso o que me ocorreu chamar de “Gestalt da Dor”, não como característica dominante da Gestalt de hoje, mas realmente como algo que às vezes vejo acontecer, onde percebo um movimento de escavucar a história passada ou presente do cliente em busca do dolorido, em sessões muitas vezes sombrias, sem leveza, sem ousar o humor, sem a vitalidade e a esperança de que falei antes. Quero dizer que falo disto com muita cautela, e peço cuidado na escuta, pois vejo como extremamente positivo a possibilidade da dor ter espaço na relação terapêutica, sem a pressa de encontrar “soluções” que muitas vezes aliviam muito mais a ansiedade do terapeuta e sua dificuldade de agüenta-la ou com ela lidar, do que propriamente a dor do cliente, que paradoxalmente muitas vezes é aliviada justamente pela possibilidade do continente encontrado. A “Gestalt de hoje” caracteriza-se por conter uma atenção delicada, valiosa e essencial aos aspectos machucados da “criança interna” oculta de cada um, ou do “adolescente interno” de cada um, o que não era muito presente na “Gestalt de antes”, e que tem possibilitado ao terapeuta acesso a espaços do universo interno dos mais recônditos – que, parafraseando Chico Buarque, eu chamo de “espaços da delicadeza” – o que não era muito comum então. Trabalhos com raiva, revolta, assertividade e limites eram mais comuns.
Creio então que também aqui uma integração entre estes aspectos é importante. Escutei de um gestalt terapeuta israelense, Shraga Sirok, no Congresso do México a que me referi, que ao lado da atenção às “gestalts inacabadas” (unfinished business), considerava de suma importância o terapeuta estar atento também à presença e qualidade de “gestalts não-iniciadas” (unstarted business), i.e. aos projetos e sonhos futuros. Quem já esteve próximo de quadros depressivos sabe que estes se caracterizam justamente pela falta de perspectivas em relação ao devir. No Encontro de Brasília, ao responder a uma pergunta sobre o caráter da cura sem aspas em Gestalt terapia, o Ari expressou de forma poética essa visão, que a meu ver tem que estar presente como ingrediente e perspectiva no processo terapêutico. Disse ele: “Cura, na perspectiva existencial de Heidegger, é o cuidado, ou pré-ocupação com o devir”, e que neste sentido “é a capacidade de se apaixonar pelo futuro”, e adicionou: “O terapeuta caminha junto ao outro, sem ter um ponto determinado de chegada, para o novo.” É sob esta luz que advogo o resgate da “Gestalt da Esperança.”
O terceiro e último ponto que quero levantar tem a ver com nossos fascínios e incursões por referenciais externos à Gestalt terapia. Acho que a saudade aqui é a de uma época em que nem eu nem ninguém tinha dúvidas sobre o que era um trabalho ou um referencial gestáltico, e podia-se facilmente reconhecer o que era um trabalho de Gestalt-terapia.
O primeiro exemplo que me ocorre em relação a isto é o fato de que como tantos outros, me fascinei pela inclusão de Buber como referencial teórico à Gestalt terapia. Faço um parêntesis aqui para pontuar que antes se mencionava Buber como uma das influências da Gestalt terapia, mas foi só a partir dos últimos 10 anos que a relação dialógica Buberiana passou a ser explicitamente incorporada ao referencial teórico da Gestalt.
A este fascínio seguiu-se para mim uma atitude mais cautelosa, um certo “ôpa, pera aí”, ao ouvir o alerta de Van Zuben* sobre o perigo de reducionismo ao se transpor um modelo filosófico e teológico para as relações entre as pessoas que segundo ele, têm certamente um repertório maior de relacionamentos do que as modalidades Eu-Tu e Eu-Isso, como por ex. na relação professor-aluno, que sem ser uma relação Eu-Tu, não implica em que o professor se relacione com o aluno como “Isso”. É claro que o que permaneceu intacto foi o entusiasmo pelo enfoque relacional, pelo domínio do “entre” como fonte curativa. A ênfase no indivíduo-em-relação, no contato e nos distúrbios de contato sempre foi parte essencial da gestalt terapia, mas muitos trabalhos de antes, olhando em retrospecto, caracterizavam-se por ser um trabalho muito mais do cliente dirigido pelo terapeuta, do que trabalhos onde a relação com o terapeuta tornava-se figura, o que traz elementos importantes e valiosos para o trabalho terapêutico. E ao dizer isto de novo peço cautela na escuta, pois realmente não me refiro a todos os trabalhos que presenciei naquela época. Projeções por ex., eu vi com freqüência serem muito bem trabalhadas.
Prosseguindo pelo itinerário dos fascínios e incursões por referenciais externos à Gestalt-terapia, percebo ter havido nos últimos 10 anos, um desejo de compreensão e aproximação mais cuidadosa e atenta, de nossas dinâmicas mais profundas e sutis, dos universos e paisagens internas de nossas intimidades psíquicas, dos cantos, no duplo sentido da palavra, de nossas interioridades. Em linguagem gestáltica, considerando o indivíduo sistêmicamente em suas dimensões bio-psico-sociais, poderíamos falar do desejo de compreensão mais profunda das maneiras pelas quais as gestalts que estão sendo vividas agora, as já vividas que chegaram a uma boa resolução e nos dão suporte para novas experiências, as inacabadas e as não iniciadas, interagem, se constelam e se configuram em nosso processo de viver, em estilos ou padrões de nos relacionarmos conosco, com os outros e com o mundo. Formas estas sempre em processo, mas freqüentemente com aspectos cristalizados e traços mais duradouros, com aspectos mais ocultos e de mais difícil acesso.
Este movimento se manifestou de várias maneiras. No grupo coordenado pela Miriam Bove Fernandes, na procura de uma compreensão de etapas de desenvolvimento pela ótica da Gestalt-terapia, que viesse de encontro à necessidade de uma compreensão de certos fenômenos, percebidos na relação terapêutica, em termos desenvolvimentais. Em outros gestalt terapeutas – em termos de compreensão clínica, categorias diagnosticas e orientação terapêutica- este movimento se manifestou em incursões e fascínio por referenciais neo-psicanalíticos* (mais especificamente o das teorias das relações objetais e o da psicologia do self.) ou, no caso, de Naranjo, na integração ao trabalho gestáltico, das categorias diagnósticas de caráter mais esotérico de Oscar Ichazo, que ele chama de “proto-analítica” – o eneagrama. Aliás, já antes Michael Connant do Instituto de Gestalt-terapia e Bioenergética de Berkeley, propunha uma adaptação da Bioenergética com a Gestalt-terapia.
Pessoalmente participei tanto destes fascínios, com também me encantei com as possibilidades de integração do referencial de Mitologia Pessoal de Feinstein e Krippner com a Gestalt-terapia, a partir de uma reflexão sobre a necessidade de ampliação da noção de “fundo” em Gestalt terapia, trabalho que apresentei no Encontro Nacional de Brasília, e também no México, no Congresso Internacional de Gestalt-terapia a que me referi antes. Mas também em autores da Gestalt-terapia, que escrevem em linguagem absolutamente gestáltica, encontrei respostas para este movimento, para este desejo. O artigo de Sylvia Fleming Crooker que discorre sobre as disfunções de contato como limitações às possibilidades existenciais de uma pessoa, literalmente me fascinou, e na minha prática terapêutica é um referencial que realmente enriqueceu meu olhar e meu pensar sobre meus clientes e os processos que estão vivenciando. Este trabalho é um exemplo de como é possível usar uma linguagem exclusivamente gestáltica para descrever meandros da nossa interioridade sem necessidade de termos que nos são alheios. E em alguns poetas e escritores como Clarice Lispector, em alguns filmes, também tenho encontrado eco para estes anseios.
Há, portanto, e acho sumamente importante diferenciar isto, um desejo, um movimento de procura por um lado, e os referenciais encontrados ou criados, por outro. Acho importante isto pois, se por um lado me parecem poucas as tentativas de encontrar ou criar respostas para este movimento na Gestalt-terapia, por outro, nos referenciais externos encontrados, sinto que resvalamos às vezes para assimilações onde acabamos não sabendo bem com digerir certas partes, ou, nos descobrindo com um transplante de certas partes que nos são incompatíveis. Este é um tema que tenho discutido em grupos de estudo, e sei que a Fátima Barroso também vai falar sobre isso.
Gostaria de dar um exemplo: tenho visto recentemente alguns gestaltistas utilizarem-se dos conceitos Winnicotianos de “verdadeiro self” e “falso self”. Aliás, como bem me lembrou a Fátima, conceitos também de Laing. Bem, mas a gestalt terapia se caracteriza e se diferencia de certas abordagens, justamente por ver defesas e couraças como partes da pessoa. Assim, se percebo oscilar internamente em uma pessoa, ora uma percepção de superioridade em relação aos outros, ora de inferioridade, ou se ela exibe um ego inflado, mas interiormente se sente uma menininha insegura e tímida, ou se tem aspectos mais “saudáveis” (entre aspas) e outros menos “saudáveis” (também entre aspas), posso dizer gestalticamente que um é seu verdadeiro self e outro é falso? Se o self é conceituado na gestalt terapia** como sistema de ajustamentos criativos no meio, como o sistema de contatos a qualquer momento, ou mais especificamente, como a fronteira de contato em ação (qualquer ação), como conceber a partir desta conceituação uma maneira de interagir e estar no meio que seja falsa? Isto me parece incompatível com a Gestalt terapia. O novo livro de Polster, “Uma População de Selves”, ao identificar distintos aspectos da pessoa como diferentes personagens internos, me parece bem mais de acordo com a nossa abordagem.
Assim, se por um lado me oponho ao uso de viseiras, continuo a acreditar que o conhecimento de diversos mapas amplia minha capacidade de ver e que ampliar horizontes e conhecer outros referenciais é sempre enriquecedor, acho importante cuidar para não integrar à Gestalt terapia aspectos que lhe são incompatíveis e que perigam por descaracterizá-la. É bom viajar, conhecer outros territórios, trazer lembranças e presentes, sair sempre proporciona enriquecimentos ao olhar. Às vezes, viajar traz o desejo de mudar de morada, de emigrar. Mas no caso de volta, também é importante saber voltar.
Às vezes se fica meio no limbo, nem bem aqui nem lá. Anos após meu retorno ao Brasil, um colega nosso, Beto, me disse uma vez que eu parecia estar ainda de mala na mão. E às vezes acontece, o que também se deu comigo quando voltei dos Estados Unidos e reencontrei em Parati, um grupo de amigos com quem eu costumava tocar sambas e serestas antes de viajar. “A Selma voltou com o samba americanizado”, foi o que me diziam achando muita graça. O que eu estava tocando não era mais samba.
Finalmente, gostaria de terminar essa fala com o relato de um sessão de terapia que tive com um cliente que já estava em terapia comigo há algum tempo. Escolhi relatar essa sessão pois percebo nela e integração de alguns pontos que mencionei antes. Espontaneidade, criatividade, soltura, um jeito pouco comum para mim de trabalhar, junto a cuidado, acolhimento. O realmente estar lá, para o outro e com o outro. Sessão cheia de dor e também de esperança :
Carlos era um cliente que já estava a algum tempo em terapia comigo. Tinha perdido a mãe aos 3 anos de idade, e desde então havia sido criado por seu pai e uma madrasta com quem nunca se deu bem. Sabia por outros que tinha sido o filho preferido de sua mãe, e repetidamente em sua vida procurava tias e pessoas que a conheceram, para procurar saber como ela era, que jeito tinha, o que sentia, o que pensava. Carlos tinha na ocasião um filho de três anos com quem tinha uma ótima relação, e uma mulher, por quem era apaixonado mas com quem freqüentemente abria mão de seus limites e preferências pode medo de perdê-la.
A perda da mãe era um tema que havia estado presente em algumas sessões. Nesta sessão Carlos trouxe consigo o retrato da mãe. Eu lhe sugeri que colocasse o retrato diante de si, e que ele, imaginando que de alguma forma sua mãe pudesse realmente estar ali lhe ouvindo, falasse com ela. Carlos o fez, e depois de um período de silêncio me disse que não sabia como começar, o que dizer a ela, já que nunca tinha falado com ela. Eu lhe sugeri então que começasse exatamente por aí, isto é, dizendo à sua mãe que não sabia como lhe falar, pois nunca havia falado com ela – e ao lhe sugerir isto, apaguei a luz da sala deixando apenas a luz de um abajur de canto, trazendo à sala uma luz mais intimista.
Carlos aceitou minha sugestão, e ao dizer estas palavras, embargado pela emoção, começou a chorar copiosamente, contando à mãe da falta que sempre sentiu dela, de como sua vida tinha sido ruim na casa de seu pai, após sua morte, e de como havia sempre procurado saber dela, perguntando aos que a conheceram como era, o que pensava, ou que se lembravam dela. Carlos falava entrecortado por soluços, quando eu lhe segurei a mão, e de forma intuitiva comecei a lhe falar como se eu fosse a sua mãe, porém sem inserir nenhum conteúdo que ele não me houvesse contado antes. Eu lhe dizia “como você cresceu, meu filho, que rapaz bonito você se tornou, tão alto, tão forte, olha só o seu cabelo, era tão clarinho e macio, ficou tão forte e escuro… Que bom poder me encontrar contigo depois de tantos anos…”
Carlos, ainda chorando, falava com a mãe, lhe contando de como havia querido que ela tivesse estado presente em sua vida, tantos nos momentos mais difíceis quanto nos de maior contentamento, como no seu casamento… quando eu, ainda como sua mãe, lhe disse: “Mas eu tenho estado presente na tua vida. Olha só o teu filho, com três anos já tão afeitvo, tão carinhoso, não é? Com três anos uma criança já aprendeu a amar, e isso filho, você aprendeu comigo, por que eu te amei muito. Você sempre foi meu filho preferido, sabia? Teu jeito afetivo e carinhoso de ser, de se relacionar com teu filho e tua mulher, teu jeito amoroso de lidar com as pessoas, você aprendeu comigo. Fui eu que te ensinei isso.”
Nos abraçamos forte e longamente enquanto seu choro se acalmava, nos despedindo como mãe e filho. Eu acendi a luz maior da sala, nos olhamos sabendo ter partilhado um momento único e precioso, e sem outras palavras a não ser o que não dava para falar, nos despedimos como cliente e terapeuta. Carlos ficou mais tempo em terapia, e concluímos o processo. Ele havia conseguido fechar uma gestalt interna, dolorosamente inacabada.
NOTAS
* Newton Aquiles Von Zuben, professor de Antropologia Filosófica da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, tradutor da edição brasileira do livro “Eu e Tu” de Martin Buber e autor da larga introdução que acompanha o texto em português.
* * Por exemplo em Breshgold & Zahm 1993, Frazão 1992, Jacobs 1993, Martin 1987, Tobin 1982 e Yontef 1988,1993.
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