Com Certeza, Até Porque (Ênio Brito Pinto)
publicado em 09.05.2017 por anapaulaCom Certeza, Até Porque
O futuro chama-se incerteza.
Edgar Morin
É fato sabido que cada época histórica traz em seu bojo uma série de modismos e de características próprias que lhe dá o tom e, ao mesmo tempo, a desvenda. Assim, a década de sessenta, por exemplo, trouxe como grande marca a revolução cultural representada pelos hippies e pela palavra de liberdade neles simbolizada, que trazia ao mundo o desvendamento de uma época plena de descobertas libertadoras, desde a maior liberdade sexual alcançada então até a possibilidade da liberdade da vida na terra, com as viagens até a lua.
Desde lá, muito tempo passou, muita coisa mudou, o mundo já não é o mesmo. Outras palavras apareceram com o intuito de nos desvelar para nós mesmos, se tivermos a paciência de prestarmos atenção. Neste início de século no Brasil, duas expressões chamam a atenção pela quantidade de vezes em que são usadas, quer seja pelos principais meios de comunicação, quer seja pelas pessoas comuns em suas conversas cotidianas. São as expressões que dão título a este artigo: ‘com certeza’ e ‘até porque’. Não é preciso muito trabalho para percebermos como elas são usadas e como fazem parte inextricável de nosso dia-a-dia. Basta uma passada de olhos pelo jornal que logo nos encontraremos diversas vezes com elas, basta um pouquinho de tempo diante da TV, principalmente diante de programas de entrevistas, para ouvirmos uma e/ou outra dessas expressões.
Se por um lado elas se tornam até cansativas para quem tem os ouvidos mais sensíveis e mais atentos, por outro lado elas fazem pensar: por que será que justamente essas expressões se tornaram tão marcantes nessa nossa época a ponto de serem tão repetidas? O que será que poderemos entender sobre nós mesmos a partir de uma análise, ainda que ligeira, dessas expressões?
A primeira expressão (‘com certeza’) é extremamente interessante porque geralmente é dita numa entonação de ênfase, uma ênfase às vezes até exagerada. As pessoas usam ‘com certeza’ a todo momento, substituindo por esta expressão o simples ‘sim’, o perigoso ‘talvez’, o angustiante ‘não sei’ e outras palavras ou expressões pouco em voga ultimamente, como, por exemplo, ‘tomara’. No entanto, nenhuma expressão é tão desatualizada atualmente como o ‘com certeza’.
Se olharmos para a história da humanidade, notaremos que quanto mais a ciência se desenvolveu, mais as certezas humanas foram derrubadas, desde a certeza de estarmos no centro do universo até a certeza de que poderíamos prever o futuro da humanidade e do planeta.
No Brasil de hoje, então, nem se fala quão pouca certeza temos. Ao sairmos de casa, já não temos mais a certeza de que voltaremos, tal a violência que grassa em nossas cidades; ao chegarmos ao trabalho, que certeza temos de que ainda amanhã lá estaremos? Ao olharmos para nossos filhos, que certeza podemos ter acerca do futuro deles?
Por aí afora, são tantas as incertezas que têm cercado nosso dia-a-dia, que não estranha que se use com tanta ênfase o ‘com certeza’. Ele nos dá uma certa compensação, uma ilusão de que estamos mesmo no comando de nosso destino, por mais que na verdade estejamos mesmo é sujeitados a toda sorte de desmandos governamentais ou do mercado, aparentemente indefesos diante de uma estrutura de poder que nos tenta roubar a todo momento nosso direito à cidadania, como se não bastassem as tantas incertezas ontológicas de nosso destino enquanto seres humanos, frágeis e prescindíveis criaturas destinadas à morte.
Se o mundo de hoje não nos possibilita as certezas, ele nos enche de alternativas em todos os aspectos da existência: desde o aspecto religioso (são tantas as religiões!), até o aspecto das opções existenciais (cada vez mais pessoais), a variedade de possibilidades diante do ser humano moderno é enorme. Somos obrigados a escolher, mas não devemos nos posicionar com muita clareza. Ou seja, escolher sofisticadamente, sem simplicidade. O ‘até porque’ possibilita escolhas relativas pelas quais pouco se tem que lutar. Afinal, estamos no mundo das mudanças, do volátil, do modismo e da divinização da novidade. A profundidade é pecado no mundo globalizado atual. O ‘até porque’ mantém a vida rasa. Some-se a isso o fato de que o mundo hoje tem pressa, de que tudo tem que ser muito rápido, pois as pessoas não têm tempo para perder com conversas ou com leituras, e aí está mais uma justificativa para o ‘até porque’. Eu não explico, você faz de conta que entende, e está tudo bem.
Além disso, o ‘até porque’ denuncia um grave problema brasileiro: ele é substituto para outras expressões quando há falta de um vocabulário melhor construído. Com o nível da educação no Brasil, como podemos esperar que a maioria de nossa população tenha um bom vocabulário? Com a substituição da conversa na família pelo silêncio diante da televisão, como esperar que as pessoas possam desenvolver melhores formas de comunicação? Haja, então, ‘até porque’.
Desta forma, penso que há um sentido para que essas duas expressões estejam tão presentes na fala brasileira cotidiana, pois elas nos retratam ao mesmo tempo em que nos permitem que nos escondamos de nós mesmos. Dizendo convictamente ‘com certeza’, ignoramos (a um alto custo, é verdade) as possibilidades tantas da vida e seguimos fazendo de conta que pouco podemos diante das incertezas de nossa existência. Dizendo tantos ‘até porque’, mantemos nossa pobreza de vocabulário, falamos como se escrevêssemos telegramas, tentamos não nos atordoar diante das tantas alternativas existenciais que o mundo moderno nos propicia.
É bem verdade que fingirmos que uma coisa não existe não a faz desaparecer, mas que é tentador fazer isso, não há a menor sombra de dúvida. Ao fingirmos que temos certeza, podemos não nos afastar de nossas inseguranças, mas conseguimos nos afastar das nossas responsabilidades diante do mundo que diuturnamente criamos. Ao não aprofundarmos nossas escolhas e ao não nomearmos nossos motivos, continuamos a fazer escolhas, mas haverá sempre um ‘até porque’ nos facilitando não lutar por elas.
Num mundo de uma globalização tão despersonalizadora e assustadora como o atual, não é à toa, portanto, que as pessoas buscam ter tantas certezas, não é à toa que é tão difícil para as pessoas se acalmarem diante do ato de escolher.
EBP/Set/2001