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Alguns Aspectos da História e da Fundamentação da Gestalt-terapia (Ênio Brito Pinto)

publicado em 09.05.2017 por anapaula

Alguns Aspectos da História e da Fundamentação da Gestalt-terapia 

Ênio Brito Pinto

Minha intenção é apresentar um breve panorama da história da Gestalt-terapia. Talvez mais do que um panorama, um breve retrato. Um retrato bastante reduzido, mas que, espero, possa dar uma idéia suficientemente abrangente da filosofia e da técnica da Gestalt-terapia.

A Gestalt-terapia é uma teoria de personalidade e uma teoria de psicoterapia que vem sendo continuamente desenvolvida por autores contemporâneos. Faz parte da chamada terceira força em Psicologia, ou corrente humanista, que emergiu como reação às visões psicanalítica e comportamentalista do ser humano.

São alguns conceitos básicos da Gestalt-terapia: o ser humano é um ser de relação (relação consigo mesmo, com o mundo, com os outros); totalidade e integração (a pessoa como uma unidade psique-corpo-espírito); o ser humano como unidade indivíduo-meio (o ser humano está constantemente interagindo com limites sociais e ambientais); unidade de passado, presente e futuro (o aqui-e-agora é o tempo e o lugar onde as modificações podem ocorrer); auto-regulação (o ser humano é um todo unificado que se auto-regula). Em suma, a teoria da Gestalt-terapia é uma teoria de processos, ou seja: o que importa é o relacionamento entre eventos. A visão do gestalt-terapeuta é uma visão voltada para a dinâmica que acontece em determinado momento da vida de uma pessoa. Assim, entendem-se as estruturas da personalidade como funções ou conjuntos de funções, não como entidades. São mais importantes o ‘como’ e o ‘para que’ do que o ‘o que’ ou o ‘porquê’.

A premissa da qual parto é a de que toda abordagem em psicologia apresenta, ainda que apenas implicitamente, uma teoria do ser humano. A Gestalt-terapia pretende ser uma síntese criativa e coerente, em constante transformação, de algumas correntes filosóficas ou psicoterápicas: o humanismo, o existencialismo, a psicologia fenomenológica, a psicanálise freudiana, os trabalhos de Reich, a psicologia da Gestalt, a teoria organísmica de Goldstein, a teoria de Lewin, alguns aspectos do taoísmo e do budismo. É desse base de influências que se pode depreender a visão de ser humano da abordagem gestáltica.

O principal criador da Gestalt-terapia foi Frederick Salomon Perls, o Fritz Perls, como ficou conhecido. Fritz nasceu em Berlim, em 1893, filho de pais judeus.

Em 1920, aos 27 anos, portanto, graduou-se em Medicina, passando a trabalhar como neuropsiquiatra.

Em 1926, em Frankfurt, trabalhou com o neuropsiquiatra Kurt Goldstein e com sua assistente, Laura Posner, mais tarde co-fundadora da Gestalt-terapia, assim como Paul Goodman e Ralph Hefferline. Perls e Laura casaram-se algum tempo depois de seu trabalho com Goldstein.

Goldstein é um dos expoentes da teoria organísmica, uma das principais influência exercidas sobre Perls e, por extensão, sobre a Gestalt-terapia. Vem daí a idéia central na Gestalt-terapia de se considerar o indivíduo como um todo, uma entidade biopsicossocioespiritual.

Do trabalho de Goldstein, imensamente importante para a Gestalt-terapia, pode-se deduzir que “o ser humano é regulado e tende ao equilíbrio. Realiza-se intensamente atendendo às suas necessidades. Para tanto, compõe-se com o ambiente e/ou redistribui intensamente sua energia pelo organismo. É este o homem uno e integrado.” (Martins, 1995, p. 57) Para Ribeiro (1999, p. 118 e ss), os processos básicos, em termos de dinâmica específica de comportamento, segundo Goldstein, são 3: 1) Processo de equalização ou centragem do organismo;2) Auto-realização; 3) Pôr-se em acordo com o meio ambiente.[1]

Uma vez que já vimos, ainda que muito superficialmente, as idéias básicas de Goldstein que influenciam a Gestalt-terapia, vamos dar uma olhada em outra das mais importantes bases da Gestalt-terapia: assim como muitas das abordagens em psicoterapia, a Gestalt-terapia é, de certa forma, filha da Psicanálise. Fritz Perls e sua mulher, Laura, eram psicanalistas quando lançaram as bases da Gestalt-terapia. Durante este tempo de trabalho, fizeram um trajeto desde a Alemanha (de onde fugiram do terror nazista) até os EUA, onde finalmente se radicaram, passando pela Holanda e pela África do Sul, onde residiram e trabalharam por alguns anos, até fugirem do fascismo representado pelo “apartheid”, chegando finalmente aos EUA. As influências da Psicanálise sobre a Gestalt-terapia são um dos pontos mais debatidos no interior da abordagem gestáltica, havendo mesmo teóricos que dizem que ela se dá muito mais pelo que não fazer que pelo que fazer em um trabalho psicoterapêutico. Voltarei mais adiante a este tema.

De Friedlander, Perls aproveita o conceito de indiferença criativa e a maneira de ver as polaridades, ou seja, o aspecto da qualidade polar da vida humana: a polaridade da personalidade é um dos pilares da Gestalt-terapia. De Jan Smuts, Fritz traz importantes reflexões sobre o holismo. Com relação ao trabalho com os sonhos, há influência de Jung, que via os sonhos mais como expressões pessoais criativas do que como disfarces inconscientes de experiências problemáticas ou apenas motivados por realizações de desejos. Em Gestalt-terapia, os sonhos são entendidos também em termos de situações inacabadas que clamam por satisfação e finalização. Este conceito (situação inacabada) nos leva a outra influência recebida pela Gestalt-terapia: a teoria da aprendizagem da Gestalt, desenvolvida por Wertheimer, Köhler e Koffka, na Alemanha dos anos vinte. Influência tão marcante que acabou por determinar o nome da teoria que Perls criaria.

A fundamentação básica da Psicologia da Gestalt é a de que a percepção depende da totalidade das condições estimulantes, ou seja, depende do campo total (indivíduo-meio), quer dizer, depende de características do estímulo e da organização neurológica e perceptiva da pessoa.

A palavra “Gestalt”, derivada da raiz germânica “Gestalten”, significa todo ou configuração. Na Psicologia da Gestalt, gestalten são totalidades significantes da experiência. Para a Psicologia da Gestalt o todo é diferente da soma de suas partes. Há uma condição inata de necessidade humana de organização e de integridade da experiência perceptual, da qual podemos depreender que uma pessoa não pode prosseguir seu processo de crescimento até antes de haver completado qualquer coisa que experiencie como incompleta em sua vida.

O conceito da Psicologia da Gestalt de figura e fundo é básico para a Gestalt-terapia. Tal conceito permite ao ser percipiente organizar suas percepções numa unidade dinâmica a mais vigorosa possível. Os conceitos, oriundos da Psicologia da Gestalt, principalmente o que se refere a figura e fundo, são importante base para as noções de saúde e de doença da Gestalt-terapia. Além disso, há que se dar atenção a uma série de princípios que regem a percepção, segundo os teóricos da Psicologia da Gestalt: proximidade, similaridade, direção, disposição objetiva, destino comum e pregnância. Também como conceito básico importante é o que trata do aqui e agora em termos de percepção : a experiência da percepção aqui e agora tem mais influência na percepção de um objeto ou de uma forma que a experiência passada com essa mesma figura. Além disso,

subjacente a estes e a outros conceitos oriundos da Psicologia da Gestalt está a diferença entre a realidade psíquica (o que eu percebo) e a realidade objetiva (o mundo das coisas) e a impossibilidade de compreender o homem sem uma visão holística do mesmo, que agrupe numa Gestalt (numa configuração) as partes deste homem bem como sua relação com os outros homens e com a natureza. (Martins, 1995, p. 55)

Outra influência colhida pelo casal Perls veio de Adler, cujas concepções “do estilo de vida e do eu criador apoiaram a participação única e ativa de cada indivíduo que – no curso de sua evolução pessoal – entalha a sua natureza específica. (…) Adler relembrou aos psicoterapeutas a importância da superfície da existência. Para a Gestalt-terapia, a superfície da existência é o plano do foco preordenado, a própria essência do homem psicológico. É nesta superfície que existe a consciência, dando à vida sua orientação e significado. Vem de Adler a influência para que, em Gestalt-terapia, acreditemos “que o homem cria a si mesmo”. A maior energia para a realização deste esforço prometeico provém de sua consciência e da aceitação de si mesmo tal qual é.” (Ribeiro, 1985, p. 21)

A orientação humanista da Gestalt-terapia se deve a algumas influências sofridas pelo casal Perls, notadamente de Otto Rank, que acreditava que a primeira luta humana é aquela pela individuação pessoal, o que se tornou também uma das preocupações centrais da Gestalt-terapia. Esta luta se dá através dos esforços que a pessoa faz para integrar seus medos polares de separação e de união, ou seja, a eterna luta humana entre autonomia e heteronomia. Se nos separamos demais, corremos o risco da perda da relação com o outro; se nos unimos demais, o risco é o da perda da individuação.

A idéia da resistência vista como criativa e como facilitadora de uma nova organização pessoal também advém de Rank e é capital na Gestalt-terapia. A resistência não deve ser combatida, mas sim deve ser trazida à consciência do cliente e respeitada como um limite do seu agora.

Outra base importante para a Gestalt-terapia é a filosofia existencial, principalmente através de Heidegger, Martin Buber, Binswanger, Rollo May e Merleau-Ponty.

O ser humano como um ser em relação é uma das contribuições que o movimento existencialista do pós-guerra trouxe à Gestalt-terapia. Além desta, podemos listar outras contribuições dos existencialistas: experiência; autenticidade; confrontação; ação viva e presente.

Para a Gestalt-terapia, isto implicou na ênfase na “singularidade, particularidade, e concretude do homem diante de suas relações e de sua responsabilidade frente a seus projetos e às suas escolhas.” (Barbalho, 1995, p. 2) Metodologicamente, a implicação diz respeito à fundamentação da terapia no relacionamento dialógico e na fenomenologia.

Tratando da influência de Buber no trabalho gestáltico, Cardella (2002, p. 36 e ss) argumenta que Buber acredita que a civilização moderna, ao não valorizar os aspectos relacionais da vida, ampliou o espaço para o narcisismo e para o isolamento do ser humano. Esta relação, o inter-humano, está presente no e dando sentido ao diálogo, entendendo aqui diálogo não somente no que se refere ao discurso, mas ao fundamento relacional da existência humana. Este diálogo acontece “na esfera do ‘entre’, mediante a vivência de duas polaridades, EU-TU e EU-ISSO, as duas atitudes fundamentais do ser humano para relacionar-se com os outros e com o mundo.” (Cardella, 2002, p. 37) Para Buber (1979, passim), o ser humano não pode viver sem relações EU-ISSO, mas não é humano aquele que só vive relações EU-ISSO. Diz o filósofo que a realização do EU se dá na relação com o TU, uma relação de seres em sua totalidade. Assim, a relação EU-TU valoriza o outro na sua alteridade, de modo que a outra pessoa é um fim em si mesma. Na relação EU-ISSO, a outra pessoa é considerada um objeto a partir do qual se atinge um fim.

O encontro EU-TU não pode ser forçado, de maneira que só podemos nos colocar disponíveis para ele; este encontro é algo que acontece, é quase que uma graça, se me é permitido usar de um termo religioso. A existência sadia pode ser caracterizada, dentro deste ponto de vista, pela possibilidade da vivência da dualidade EU-TU e EU-ISSO, uma alternância entre aproximação (relação) e separação, um ritmo de ir e vir, uma alternância de contato e retraimento num compasso sempre muito pessoal.

Ao valorizar o aspecto relacional da existência humana, a Gestalt-terapia se mostra com uma atitude terapêutica e uma visão de ser humano fundamentada na abordagem dialógica, a qual valoriza o ‘entre’, “o verdadeiro lugar e o berço do que acontece entre os homens.” (Buber, cit. em Hycner, 1997, p. 29) Segundo Hycner (1997, p. 29),

aquilo que nos une como seres humanos não é, necessariamente, o visível e o palpável, mas, sim, a dimensão invisível e impalpável ‘entre’ nós. É o espírito humano que permeia qualquer interação nossa. É o ‘fundo numinoso’ que nos envolve e interpenetra. A partir dele emergem nossa singularidade e individualidade, tornando-se figura. É a fonte da cura.

Data de 1927, a mudança de Fritz para Viena e o começo de seu treinamento em Psicanálise. Fritz foi analisando de Wilhelm Reich; teve também Karen Horney como supervisora e terapeuta. Sem dúvida, uma das maiores influências exercidas sobre os Perls veio de Reich. O corpo, os gestos, o olhar, a entonação da voz, passam a fazer parte da terapia. Além disto, há uma preocupação não só com a estrutura da fala, mas também com a forma da fala. Reich reformulou o conceito de libido, definindo-a como excitação, o que torna adequada para explicar a atividade presente no indivíduo, sem ter que apelar para especulações sobre os instintos ou sobre a infância. Através do conceito de couraça muscular do caráter, Reich fez com que “a terapia se devotasse ao afrouxamento desta rigidez corporal restritiva, de forma a liberar a excitação para o comportamento natural que o indivíduo havia enterrado. (…) Esta foi uma perspectiva surpreendentemente simples do homem, que iluminou os aspectos básicos e simples do comportamento: a sensação, o orgasmo, e a riqueza da expressão imediata e não distorcida. (…) A tendência de Reich de ver com simplicidade as ações simples levou a uma fenomenologia mais vigorosa.” (Polster e Polster, 1979, p. 275/276)

Moreno e o Psicodrama, com o conceito de que é mais provável fazer-se descobertas participando-se de uma experiência do que falando sobre ela, é uma de outra das influências recebidas pela Gestalt-terapia.

Em 1942, Fritz escreveu o livro “Ego, Fome e Agressão”, no qual critica a teoria psicanalítica com base em pesquisas sobre percepção e motivação. Neste livro Fritz lança uma importante discordância teórica com relação à psicanálise: a idéia de que a base da agressão e do sadismo está na fase oral e não na fase anal do desenvolvimento infantil. É também neste livro que Perls lança alguns conceitos básicos do que seria, mais tarde, a Gestalt-terapia: a realidade do aqui e agora, o organismo como totalidade, a unidade organismo/meio, a dominância da necessidade emergente e uma reflexão sobre o conceito de agressão, que é entendida como uma força biológica importante para o crescimento. Data de 1951 o lançamento de Gestalt Therapy – Excitement and Growth in Human Personality, escrito por Frederick Perls, Paul Goodman e Ralph Hefferline, livro no qual, pela primeira vez, foi utilizado o termo “Gestalt-terapia”, e que é o livro mais básico da Gestalt-terapia.

Em 1962, Perls entra em contato com o zen-budismo ao passar uns tempos em um mosteiro no Japão e aprende lá alguns conceitos que se incorporam à filosofia da Gestalt-terapia; dentre esses conceitos, quero aqui destacar três: permitir o fluir da experiência, ou seja, seguir o fluxo de awareness; a aceitação do que se é; e a possibilidade de se aprender a lidar com o vazio, o qual é fértil de possibilidades, uma vez que, não raro, é o momento que precede o ato criativo.

Fritz faleceu em 14 de março de 1970, no Canadá. Laura, em 1990, nos EUA. Deixaram como legado uma das mais importantes abordagens da Psicologia e da psicoterapia atual, uma abordagem em constante desenvolvimento e em constante luta por um mundo mais humano e mais simples.

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

BARBALHO, M. C. M. Histórico da Gestalt-terapia. in Revista do I Encontro Goiano de Gestalt-terapia, Goiânia, 1995

CARDELLA, Beatriz Helena Paranhos. A Construção do Psicoterapeuta: Uma abordagem gestáltica. São Paulo: Summus, 2002

MARTINS, Antonio Elmo de Oliveira. A Concepção de Homem na Gestalt-terapia e suas implicações no processo psicoterápico. Revista do I Encontro Goiano de Gestalt-terapia, março/abril de 1995

PERLS, Frederick S. Ego, Fome e Agressão: Uma revisão da teoria e do método de Freud. São Paulo: Summus, 2002

PERLS, Frederick S., HEFFERLINE, Ralph e GOODMAN, Paul. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1997

POLSTER, E. & Polster, M. Gestalt Terapia Integrada. Belo Horizonte, Unilivros, 1979

RIBEIRO, J. P. Gestalt-terapia: Refazendo um Caminho. São Paulo, Summus, 1985

RIBEIRO, J. P. Gestalt-terapia de Curta Duração. São Paulo: Summus, 1999

EBP/2006

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[1] Como este texto pretende ser somente de apresentação, não me estenderei sobre esses processos, remetendo o leitor para o livro de Ribeiro.

Desde 2001 desenvolvendo o saber em Gestalt-Terapia