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Metáforas para uma Gestalt (Mauro Figueiroa)

publicado em 09.05.2017 por anapaula

Metáforas para uma Gestalt 
Trabalho apresentado no VII Encontro Nacional de Gestalt-terapia e IV Encontro Nacional da Abordagem Gestáltica, Goiania, GO, 1999

Mauro Figueiroa (1)

“Quando capturamos o vento em uma caixa, ele não mais está Iá”
(ditado chinês)

Quando estava iniciando a minha formação em Gestalt-terapia tive um sonho que prenunciava uma questão que ainda me acompanha. Hoje percebo que além dos aspectos pessoais envolvidos nesta questão, ela representa também uma dificuldade histórica no desenvolvimento da Gestalt-terapia.

Vamos ao sonho:

“Estou diante de dois ambientes, de um lado parece uma igreja, e no altar há um homem de temo e grenha que está dando uma palestra sobre a fé crística. De outro lado, o ambiente é de uma sala de aula e na frente da lousa há uma pessoa toda paramentada como um sacerdote, não diz nada, realiza um rito religioso. Tenho que fazer uma escolha: devo me dirigir para um dos dois lugares”.

Parece-me evidente que o sonho indica um conflito, que surge primeiramente na condição de ter que escolher uma das duas salas, sendo que uma representa o conhecimento teórico e a outra o conhecimento experiencial.

O mais intrigante desse sonho é o seu aspecto incongruente, pois na sala que sugere uma igreja, em seu altar, está um professor apresentando uma aula sobre a fé, e na sala própria para aulas esta um sacerdote realizando um ritual religioso. E evidente aí a inversão, como se tivesse havido uma troca indevida e, mesmo que eu soubesse o que queria, ainda assim não poderia fazer a escolha, pois o que parecia ser uma coisa era outra, e vice-versa.

Qualquer pessoa um pouco mais familiarizada com a abordagem sabe que esta foi marcada desde o início por um conflito entre um enfoque mais prático-vivencial e um enfoque mais teórico-racional O primeiro representado por Fritz Perls e seus seguidores próximos e o segundo por Laura Perls e seu grupo, comumente referidos como o grupo da Costa Oeste e o grupo da Costa Leste.

Também não é novidade todas as criticas e mal entendidos daí decorrentes: de um lado a banalização e distorções que as demonstrações vivenciais produziam, de outro a perda do sentido revigorante que a ênfase no discurso teórico não alcançava.

Desde então muita coisa mudou e essa polarização inicial já se descristalizou, no entanto, percebo que tais tendências ainda se fazem presentes, e me parece que inversamente à proporção original, hoje a ênfase teórica é predominante.

Não é difícil reconhecer a pertinência dessa predominância, uma vez que passado o impacto novidadeiro da abordagem, sua sustentação e desenvolvimento careciam de um aprofundamento teórico que possibilitasse uma identidade clara e distinta da onda de terapias alternativas, que surgiram, contemporaneamente, em oposição a hegemonia da psicanálise.

No entanto, entendo que, como no sonho, nosso velho conflito se reapresenta, e todas as pontes projetadas não são suficientes para promover a tão desejada integração entre esses dois territórios distintos.

Sei que essa questão não é exclusiva da GT, podendo ser entendida como inerente à própria condição humana, e portanto, irrevogável. Entretanto considero que na GT, esse conflito resulta em maior desconforto, visto que seu método preconiza enfaticamente o envolvimento direto de seus afores com a experiência em curso Suponho inclusive que muitos de nós, e provavelmente a maioria, foram atraídos para essa abordagem a partir de algum trabalho vivencial onde pôde experimentar o frescor e o alcance efetivo desse método, e por isso mesmo se ressinta muito mais da falta da aragem fresca da experiência, quando penetra no árido e espinhoso terreno conceitual.

Um recurso que tem se mostrado bastante interessante como possibilidade de uma articulação mais integrada dessas partes distintas é a utilização de contos, provérbios, aforismos e imagens como metáforas. Estas parecem constituir uma substância conjuntiva capaz de preencher os vácuos que se interpõem entre a solidez da experiência e o etéreo do teórico-abstrato.

ALGUMAS METÁFORAS QUE ME INTERESSARAM…

Achados e Perdidos: Uma questão de fronteira, contato e awareness.

Há muitos anos, passeando pela Serra do Mar, eu me perdi. Havia deixado uma trilha e pego um riacho pelo qual fui descendo. Em um dado momento tornou-se impossível continuar por ali, tentei voltar pela trilha, mas não a encontrava. Procurei o resto do dia e a cada momento me sentia mais perdido. Escureceu e eu estava muito cansado, arrumei um jeito de dormir ali mesmo. No dia seguinte, antes de me pôr novamente à procura, enquanto urinava, olhando absorto como quem não quer nada, vi, a alguns passos de onde estava, algo cor de rosa que me chamou a atenção. Fui até lá. era um pedaço de papel higiênico que anunciava que eu passara por ali. Reconheci, aquilo era obra minha que no dia anterior fizera, antes de deixar a trilha e começar a descer pelo riacho. Confiro o local e confirmo, aquele era o caminho de volta.

Vivemos com perplexidade a experiência de não encontrar algo que procuramos no lugar onde temos certeza que o deixamos, ou onde deveria estar, mas não está. Isso é muito comum de acontecer com os óculos ou as chaves ou outros pequenos objetos de uso cotidiano, mas não só. No episódio relatado estava procurando uma pista visual baseado em algumas lembranças que, na melhor das hipóteses, eram imagens vistas na perspectiva de quem vai e não de quem volta, o que é muito diferente. Estava focalizando espaços amplos e não detalhes, enfim, em nenhum momento eu pensei no papel higiénico e, se tivesse pensado, provavelmente não acharia relevante. Esse é um exemplo típico de figura fixa, passei o tempo todo buscando algo que já não era mais, pude constatar posteriormente que a imagem que tinha do lugar na entrada do rio era muito diferente da que me aparecia na saída, então passara pelo lugar diversas vezes, mas não pude reconhecê-lo, estava cego com a imagem anterior. Cabe ressaltar que essa figura fixa ia além da imagem visual, era o meu estado emocional, o meu desespero, no qual passei a agir frenética e repetitivamente. Quem não conhece isso?

O que me permitiu encontrar foi que, naquele momento, eu não estava procurando nada, fui ver o que era aquele objeto cor de rosa por pura curiosidade, não pensei que pudesse ser uma pista para encontrar o caminho. Tendo dormido, ao acordar e me dar conta da situação em que me encontrava, logo fui novamente tomado de angustia, porém outras necessidades emergiram, me dei conta que não havia comido o lanche que levara, e precisava urinar urgentemente (aqui surgem novas figuras no campo organismo/meio que vão organizar o meu comportamento diferentemente: a energia que antes era pura ansiedade é então mobilizada para satisfazer necessidades prementes e possíveis). Assim, um pouco mais tranquilo e sem tanta pressa, não só por ter o dia inteiro pela frente, mas também porque para urinar é preciso relaxar um pouco, nesta condição, a awareness que já estava restabelecida, se amplia. Posso então olhar, ver e me interessar por outras coisas que não aquela maldita falsa pista, que passara o dia anterior inteiro perseguindo.

É bastante nítido nesse episódio a presença de dois tipos de controle, o primeiro que qualifico de onipotente, que teima que a solução tem que ser aquela que está na minha cabeça e, tudo que não corresponde é simplesmente negado, não vejo mais nada. A fronteira de contato do campo organismo/meio está aí bastante retraída. O segundo tipo de controle é aquele que a situação total dita, não é mais simplesmente só o que eu penso, mas uma realidade mais ampla, organísmica e ambiental em sintonia. Sobre isso Perls dizia: “Se você compreender a situação em que se encontra, e deixá-la controlar suas ações, então aprenderá a lidar com a vida”.(2) Vale também ouvir o velho mestre Shunrio Suzuki: “Os pintores antigos tinham uma prática que consistia em colocar no papel pontos em desordem de modo artístico. Isso é bastante difícil. Mesmo que você tente, acabará fazendo-o de alguma forma ordenada. Você pensa que a coisa está sob seu controle mas não está; é quase impossível colocar os pontos fora de alguma ordem. O mesmo se dá em sua vida diária. Embora você tente, é impossível ter as pessoas sob controle. A melhor forma de controlar as pessoas é encorajá-las a ficarem à vontade. Então elas estarão sob controle no mais amplo sentido. Dar a sua ovelha ou vaca um pasto grande é a melhor forma de tê-las sob controle”. (3)

Sobre A Atitude do Terapeuta

Uma das questões delicadas da G.T. é a presença ativa do terapeuta, tanto no sentido da sua disponibilidade enquanto pessoa como instrumento da relação, quanto como formulador e condutor de proposições operacionais como o modelo clássico de experimento. O Conto a seguir me parece fornecer uma metáfora bastante ilustrativa desse tipo de atitude.

Dois monges caminhavam juntos, chegando a um rio o primeiro continuou andando normalmente sobre as águas, o segundo se deteve, chamou o primeiro e lhe disse: existe um outro jeito interessante de atravessar o rio. Pegou-o então pela mão e conduziu-o com uma certa dificuldade pelas pedras. (Conto da tradição oral Zen-Budista)

Poderia continuar esta história acrescentando que ao ouvir o primeiro dizendo que existe um outro jeito interessante de atravessar o rio, o segundo responde: mas que rio? Ou então que, indo com o outro pelas pedras, no primeiro escorregão, ao se molhar, tenha se dado conta de sua sede e tomou da água. No mínimo é possível que tenha encontrado aí uma boa história para contar aos amigos. Ou até mesmo que tenha se convencido que o seu primeiro jeito era melhor, e então tenha convidado o outro a fazê-lo. Ou então… Este é apenas o ponto de partida para muitas possibilidades, e só isso já é em si uma grande coisa. É muito comum nos esquecermos disso. Cada novo contato altera toda a situação, às vezes sutilmente, outras dramaticamente. O fato é que quando agimos tudo já se faz diferente. O problema aqui é que na maioria das vezes agimos manipulativamente, isto é, esperando algum resultado específico, e se ele não acontece não reconhecemos mais nada.

Se vamos atravessar um rio, temos que considerá-lo como tal e nos relacionar com ele: caso contrário, não o atravessamos, passamos por cima. Em nome do conforto e segurança muitas vezes nos excedemos e empobrecemos a nossa relação com o mundo. Passamos a viver um mundo particular, não partilhado, e aquilo que nos parecia inicialmente conforto se revela um tédio insuportável.

Não é difícil imaginar que esse episódio tenha tornado a viagem mais interessante, e certamente mais real, o que também podemos supor no que diz respeito a relação entre eles. E possível também que esse primeiro monge tenha descoberto novas habilidades, e não menos, novas limitações.

Entendo que a atitude do Gestalt Terapeuta se assemelha a desse segundo monge. Deve acompanhar o outro, interferindo nos momentos em que perceba uma disfunção de contato, propiciando condições para que este se realize, restabelecendo o fluxo de figura-fundo, que resultará na ampliação da awareness (consciência do campo organismo/meio).

Ele não diz qual é o jeito certo, simplesmente sugere que experimente. Ele não interpreta as razões pelas quais o outro agiu dessa ou daquela maneira, ele simplesmente reage de acordo com a situação naquilo que se torna figura em sua awareness. Tivesse pensado antes, talvez não o fizesse. Quantas coisas deixamos de fazer porque pensamos (a não ser que tenhamos awareness do pensamento). Poderia ter considerado como sendo mais adequado deixar o outro na dele, achando que assim o estaria respeitando. Mas na verdade, isso soa mais como abandono, afinal o que é respeitar o outro? Um dos sentidos da palavra respeitar é: dizer respeito; referir-se; tocar. Ele poderia também pensar que isso não era de sua responsabilidade. Sim e não. Não no sentido que não deve usurpar a liberdade de escolha do outro, e sim porque responsabilidade significa habilidade de responder, responder às situações que se apresentam em nossa vida. Tudo o que nos aparece já nos diz respeito, exige de nós uma resposta, mesmo que esta seja uma ‘não resposta’. Esta me parece uma questão fundamental quando pensamos nossa situação no mundo hoje.

Mais que sugerir ao outro, que vá pelas pedras, ele convida para irem juntos, tão concretamente quanto possível, ele lhe estende a mão. Estender a mão, esse gesto tão singelo e tão importante em nossas existências, está aí posto como claro sentido de suporte, como quando começamos a aprender a andar, por algum tempo o fazemos apoiados no sentido suportivo que a mão estendida nos oferece, até que possamos desenvolver confiança e descobrir os recursos de auto suporte e passar a andar sozinhos. Auto-suporte é fruto de um suporte ambiental equilibrado. O terapeuta ou quem quer que seja que lide com pessoas (mãe, pai, chefe etc…) precisa estar atento a esse aspecto, tanto no que diz respeito ao seu auto suporte, quanto a medida certa de suporte que possa fornecer para o outro, sem roubar a oportunidade para que este experimente seus próprios recursos. Como se faz com as crianças quando estão aprendendo a andar.

Sobre o Processo Terapêutico

Um prisioneiro tremulo de frio numa forre tão alta que seus carcereiros nem se deram ao trabalho de repor as grades serradas em vão. Tanto trabalho serviu apenas para que, colocando a cabeça do lado de fora, ele pudesse desanimar diante da imensa distância que separa do chão, onde as pessoas passeiam indiferentes, reduzidas ao tamanho de uma formiga. E quando lhe ocorre a idéia de desfiar a magra túnica de algodão. Emendando fio em fio, pode enviar essa tênue mensagem lá embaixo, onde quem quer que queira ajudá-lo fará bem em amarrar um fio apenas mais grosso ao que desceu da forre; sem o que, a solidariedade terá um peso excessivo. Se assim for feito, os fios engrossando pouco a pouco culminarão na corda resistente a ponto de suportar um corpo. Antes de tudo, será preciso que o prisioneiro aceite sentir um pouco mais de frio. (4)

Não é difícil identificar o cliente prisioneiro na torre altiva de seu ego inflado de preconceitos, fantasmas e ideais, isolado e distanciado do mundo comum, onde já não habita mais. Sua libertação vai exigir expor-se ainda mais ao flagelo de sua condição, ao ter de iniciar um processo de interação com o outro, que esteja disponível para cooperar na medida adequada a que a sua condição exige. Esse outro facilmente reconhecível na figura do terapeuta, que supostamente conhece a delicadeza da operação. Um processo que envolvera muito tempo e trabalho paciente para desfazer-se fio a fio de sua vestimenta atual, com os quais, através de um procedimento lento e repetitivo de interações, possa ir tecendo o recurso necessário para alcançar com segurança o mundo da liberdade com os outros.

Uma Imagem Do Percurso

“A verdade não está no começo nem no fim, é na passagem que ela se apresenta”
(Guimarães Rosa)

Eu estava convencido de que o certo e o errado eram categorias muito precárias para se lidar com a realidade. Um homem me procurou dizendo que fazia tudo errado. Citou como exemplo o caminho que fazia do trabalho para casa. Já lhe haviam ensinado várias vezes o caminho certo, mas ele sempre ia por outro, que supunha então ser o errado. E dizia que assim era com tudo e desde muito tempo.

Conversamos um pouco sobre o assunto e ele foi suficientemente hábil para me convencer de que ele era realmente eficiente em errar.

Ao me dar conta disso pensei que talvez eu fosse a pessoa errada para ele. Quando ele me pergunta: Então o que devo fazer? Ponderei com ele o que havia pensado e lhe disse: experimente errar para o lado contrário.

Ele foi embora um tanto desconcertado. Depois de um tempo me ligou e deixou um recado. Vamos marcar uma hora?

Passamos a nos ver regularmente todas as semanas. No início falava com frequência sobre o tanto que errava nas coisas que fazia. Com o tempo isso foi ficando meio esquecido, certa vez comentou que parecia até que estava pior , pois já não tinha mais a clareza de antes, do que era certo e errado. Desde então não tocou mais no assunto.

Um dia chegou e me disse: vim me despedir de você. Brincando retruquei que não sabia se isso era o certo. Ele respondeu: o certo agora é que eu quero ir embora. E assim foi pelo caminho…

Finalizando

Iniciei este texto comentando uma das contradições fundamentais do homem, o conhecimento experiência! intuído em contraposição ao conhecimento reflexivo-lógico, prossegui comentando como esta contradição participa da história da Gestalt-Terapia. Assinalo, a pertinência do emprego de metáforas como contraponto ‘a essa polaridade, enquanto possibilidade de um sentido mais integrado. Ilustro a questão compartilhando algumas das metáforas que tenho apreciado. No entanto, para garantir que o meu apreço pelas metáforas não significa menosprezo às instâncias teóricas, encerro este escrito com uma pequena história que fala por si

O rabo de uma cobra revoltou-se por sempre ir atrás da cabeça, em sinal de protesto enroscou-se em um galho e não deixou a cobra prosseguir. A cabeça vendo uma frutinha apetitosa e não conseguindo alcançá-la, resolveu deixar que o rabo fosse á frente. Como o rabo não podia ver, a cobra caiu em um buraco e morreu. (5)

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(1) Gestalt-Terapeuta pelo Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo.

(2) F. S. Perls, Gestalt Terapia Explicada, São Paulo, Summus Editorial, 1977, p. 34

(3) S. Suzuki, Mente Zen, Mente de Principiante, São Paulo, Editora Palas Athena, 1994, p. 55

(4) F. Goldgrub, Trauma, Amor e fantasia, Editora Escuta. São Paulo, 1986, p. 134.

(5) Autor desconhecido, retirado do livro A Tigela e o Bastão, 120 Contos Zen, Taisen Dashimaru, Editora Pesamento, p.53

Desde 2001 desenvolvendo o saber em Gestalt-Terapia