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Gestalt-terapia no Brasil (Selma Ciornai)

publicado em 09.05.2017 por anapaula

Gestalt Terapia no Brasil* 
Apresentado na mesa “Gestalt terapia na América Latina” 
no II Congresso da AAGT – Association for the Advancement of Gestalt Therapy, 
São Francisco, EUA, 1997.


Selma Ciornai

No Brasil, como na maioria dos chamados países de “terceiro mundo”, modernidade e tradição coexistem com diferenças abissais. Ao contrário dos Estados Unidos, onde é possível encontrar mais ou menos os mesmos produtos de consumo vendidos nas grandes metrópoles, temos um nível de desenvolvimento muito diversificado, tanto nas cidades quanto entre certas regiões e as grandes cidades. Há regiões extremamente subdesenvolvidas, onde a luz elétrica ainda não chegou e onde as pessoas mal conseguem sobreviver, e cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e outras capitais, tão sofisticadas cultural e academicamente quanto os principais centros culturais do mundo – apesar de que problemas como miséria, favelas, gangues e crianças de rua existam em todas elas. Politicamente, vivemos 20 anos de ditadura, que terminaram em 1984 com eleições livres, e hoje vivemos uma democracia. Porém, esse processo de democratização ainda não atingiu as enormes diferenças econômicas e de classe que coexistem em nosso país.

Como estou aqui para falar sobre as características da Gestalt terapia no Brasil, achei que seria interessante começar com as primeiras impressões que tive quando, depois de viver por 5 anos nos Estados Unidos, voltei ao Brasil com “olhos californianos”. Fui aconselhada a me apresentar à Therese Tellegen, terapeuta holandesa que imigrou para o Brasil. Therese foi a precursora da Gestalt terapia em nosso país e era, na época, líder do grupo de Gestalt em S.Paulo. Entrou em contato com a Gestalt terapia em Londres no começo dos anos 70, e mais tarde estudou com os Polsters em San Diego. Quando um grupo de Gestalt terapia iniciou-se no Brasil, Maureen Miller (O´Hara) e Robert Martin (do Instituto de Gestalt Terapia de Los Angeles) vieram dar diversos workshops com os primeiros treinadores do grupo.

Quando voltei ao Brasil, ela logo me convidou para dar um workshop para a comunidade Gestàltica. Em um dado momento, um dos participantes contou um sonho que teve ao grupo. Como alguns dos outros participantes começaram a partilhar suas percepções sobre o significado do sonho,perguntei se ele gostaria de “trabalhar”– mas ele não quis.Continuou a querer ouvir o que as pessoas estavam dizendo sobre seu sonho, a conversa foicontinuando. Daí, vendo que ele estava mobilizado pelo sonho e pelos comentários,voltei a convidá-lo a trabalhar o sonho — e novamente ele disse que não queria não.Aí, Therese me chamou de lado sutilmente e me sussurrou: “Olha, aqui no Brasil você não precisa perguntar a uma pessoa se ela quer trabalhar, você vai começando, depois vai vendo como o processo se desenvolve.” Ora, isso sem dúvida era um jeito de trabalhar diferente do que eu havia aprendido nos EUA!E muito devido ao fato de que, ao contrário da imagem estereotipada dos brasileiros como pessoas muito abertas e expressivas, para minha surpresa percebi os participantes tímidos e bastante cuidadosos ao expor sua intimidade em grupo, precisando de muito suporte para fazê-lo. Essa experiência foi minha introdução na comunidade de Gestáltica brasileira, e à medida em que comecei a ter mais contato com esta comunidade, percebi que abrigava outras características que a diferenciavam da Gestalt que eu havia experienciado na Califórnia e em Israel, (onde eu havia morado durante seis anos), e que me pareceram realmente valiosas. Portanto, quero falar sobre essas diferenças.

Atenção ao processo em grupo

O que rapidamente chamou minha atenção quando cheguei ao Brasil em 1983 foi a importância dada ao processo em grupo. Therese havia me convidado para dirigir com ela um grupo de terapia semanal para adultos, e estava justamente escrevendo seu livro sobre a perspectiva Gestáltica no trabalho em grupo (Tellegen 1984).

No fim dos anos 70 e começo dos anos 80, eu percebia com freqüência nos Estados Unidos que os processos intrapessoais eram o foco predominante nos trabalhos de Gestalt (1). Por exemplo, no catálogo de Esalen, era usual constar junto à descrição de workshops de Gestalt terapia, uma observação avisando às pessoas que o foco do trabalhoseria em processos intrapessoais e não interpessoais. Lembro que em alguns treinamentos e workshops curtos,as pessoas entravam em linhas imaginárias de quem iria trabalhar em primeiro lugar, segundo, terceiro, e assim por diante. As pessoas vinham uma depois da outra trabalhar na cadeira vazia sem que se levasse em consideração as interações ou os processos do grupo. Em alguns treinamentos intensivos havia até uma exclusão explicitamente exigida de trocas interpessoais :você podia expressar o seu sentimento em relação a alguém quando a sua vez no círculo chegasse, mas a pessoa não tinha permissão para responder, de modo a enfatizar a dimensão intrapessoal do seu sentimento, ou seja, de que aquilo era “your thing”, i.e., uma “coisa sua.”

Mas no Brasil, processos interpessoais e grupais sempre foram uma importante parte da Gestalt terapia (2), graças à experiência anterior em Psicodrama dos primeiros Gestalt terapeutas, e também provavelmente, devido à natureza dos brasileiros. Gestalt terapeutas no Brasil sempre leram livros sobre terapia em grupo, freqüentemente utilizavam termos referentes à processos grupais, e sempre procuraramlevar em consideração o que Kepner (1980) define como sendo os níveis intrapessoal, interpessoal e sistêmico do trabalho emgrupos em seuartigo Gestalt Group Process [Processos Gestálticos em Grupo], que eu considero um “must” a qualquer um que deseje trabalhar com grupos. Contudo, tenho lido bastante recentemente em publicações de nossa área sobre teoria de campo e a necessidade de realmente incluir um pensamento de campo em nosso trabalho, o que me leva a acreditar que estamos todos caminhando nesta direção.

Estudo das fundações filosóficas e epistemológicas

Outro ponto que chamou minha atenção foi a importância dada ao estudo dos fundamentos filosóficos e epistemológicos da nossa abordagem, i. e., para a conceituação de ser humano e existência, de como o mundo é concebido, e para a base epistêmica de nosso trabalho (3). Como nossas escolas têm sido modeladas pelos padrões franceses de educação desde a época colonial, nossa tradição sempre foi estudar a base teórica e filosófica em qualquer campo de conhecimento. Nos anos 60, estudantes e intelectuais estudavam História, Filosofia, Marxismo, treinando detectar as bases ideológicas implícitas nas diretrizes educacionais, leis, ações políticas, e assim por diante. Mas a ditadura implantada em 1964 trouxe 20 anos de repressão às nossas atividades e iniciativas intelectuais, o que acabou de certa forma enfraquecendo o pensamento crítico em nossa juventude — por essa razão temos tido a preocupação de transmitir essa tradição crítica às novas gerações.

Na Gestalt terapia, essa tradição se tornou presente na constante consideração da coerência epistêmica de nossas referências teóricas no pensamento e na prática (4) . Assim, em quase todos os cursos de Gestalt terapia no Brazil há matérias dedicadas ao estudo dos fundamentos filosóficos da Gestalt terapia, especialmente a fenomenologiaHusserliana e Heiddegeriana, o Existencialismo e a filosofia Oriental. Também ensinamos em profundidade a teoria da Gestalt terapia. Traduzimos informalmente todos os capítulos da segunda parte do livro de Perls, Hefferline e Goodman (recentemente publicado) e artigos selecionados de diversos livros e publicações Gestálticas. Temos diversos autores de Gestalt terapia já traduzidos e publicados em português (5), além de livros de autores brasileiros (6). Temos revistas especializadas de Gestalt Terapia, Encontros Regionais e Nacionais.

Como conseqüência, temos uma mente crítica no que se refere à incorporação de padrões de pensamento epistemologicamente diferentes da Gestalt – ou, pelo menos, temos a preocupação em verificá-los. Por exemplo, temos lido sobre tentativas em incorporar conceitos e padrões de pensamento neo-psicanalíticos na Gestalt terapia, temos tido informações sobre a forma como Naranjo combina as categorias diagnósticas do Eneagramacom Gestalt terapia – mas apesar de alguns terapeutas sentirem-se atraídos por este referencial e o estarem estudando,nossa atitude é cautelosa; analisamos suas contradições epistemológicas e as discutimos. Apesar de termos no Brasil todo tipo de práticas religiosas espirituais, até agora, seja isso bom ou não, ainda não ouvi falar de nenhum terapeuta mesclando-as com a Gestalt terapia, apesar de às vezes haver uma dimensão transpessoal presente em alguns dos trabalhos que desenvolvemos . Um grupo de colegas está também trabalhando na criação de um modelo Gestáltico para a compreensão dos processos de desenvolvimento das crianças, e apesar de estarem lendo e estudando autores de outras áreas, têm uma grande preocupação em filtrar o que é coerente com a nossa abordagem (7) .

Alguns de nós tem até discutido que a tipo de Fenomenologia e a que tipo de Existencialismo nos referimos quando dizemos que a Gestalt terapia é uma abordagem fenomenológico- existencial. Como vocês, temos diferentes tendências no Brasil em termos de um maior desenvolvimento da abordagem Gestáltica. Temos profissionais trabalhando em diferentes áreas da Gestalt terapia: psicoterapia, psiquiatria (8) , educação (9), organizações (10) e assim por diante. Entre nós, alguns têm se interessado pelas Teorias de Relações Objetais (11), outros por uma abordagem estritamente fenomenológica (12), outros no desenvolvimento de um corpo de conhecimento da própria teoria da Gestalt (13) , e a maioria de nós pela abordagem Dialógica (14) . Penso no entanto que o estudo dos fundamentos epistemológicos e filosóficos e a ênfase em sua coerência é uma característica que permeia todas essas tendências.

Atenção às realidades econômicas e sócio-culturais

Outra característica da Gestalt terapia no Brasil tem a ver com o fato de que apesar dos conceitos mais básicos da Gestalt falarem do indivíduo como um ser-em-relação, um ser-no-mundo, parte integral do sistema individual-meio ambiente, a Gestalt terapia, especialmente nos anos 60 e 70, freqüentemente se restringiu ao trabalho com as relações mais próximas ao indivíduo e seu mundo interno. No entanto, devido à nossa situação política e econômica, no Brasil tem sido quase impossível desconsiderar o impacto dos fatores sociais, culturais e políticos na vida das pessoas. Na época da ditadura por exemplo, o social invadiu a intimidade das pessoas de tal forma, que este necessariamente se tornou figural à atenção dos terapeutas. Economicamente o Brasil tem estado em uma séria recessão durante anos, o que acarretou problemas de desemprego em larga escala. Isto levou o interesse das pessoas a desenvolver na Gestalt terapia um modo de tipo de pensamento e de prática que levassem efetivamente em consideração a influência de fatores familiares, sócio-culturais e econômicos sobre a vida das pessoas (15). Pessoalmente tenho estado especificamente envolvida com a Mitologia Pessoal de Feinstein e Krippner (1988, 1989), como uma possível contribuição a esta direção na Gestalt terapia, e o trabalho publicado no Gestalt Journal, A Importância do Fundo (Ciornai 1996b), trata parcialmente disso.

Nesta direção, temos desenvolvido programas comunitários para atender populações de baixa renda e grupos com problemas específicos (16), em alguns do quais nossos estudantes trabalham com supervisão. Também tivemos programas como encontros semanais para desenvolvimento pessoal, abertos à comunidade.

Por outro lado, devido à extrema instabilidade da nossa economia, que atingiu uma taxa de inflação de 40% ao mês alguns anos atrás, e eventos como a inesperado bloqueio de poupanças individuais imposto no início da administração do presidente Collor,tivemos que desenvolver um modo bastante criativo e flexível de sobrevivência, empregando muitos “ajustamentos criativos.” A recessão, por exemplo, torna a prática em clínica particular bem mais difícil, e terapeutas profissionais estão se voltando cada vez mais para trabalhar em instituições que oferecem serviços de saúde mental a comunidades. É um pressuposto meu, porém, que a Gestalt terapia, justamente por sua flexibilidade e criatividade, é uma boa abordagem para a nossa realidade. Por outro lado, devo admitir que a preocupação extrema com sobrevivência pode ter prejudicado, em certos momentos,nossas contemplações intelectuais e ousadias existenciais.

No entanto, ampliando o escopo de visão para além das nossas fronteiras físicas, vejo que vivemos num mundo onde as polaridades são cada vez mais acentuadas. Há um crescimento assustador de movimentos fanáticos em todo o mundo, a ecologia e biodiversidade de nosso planeta estão cada vez mais ameaçados.Assim, acredito que seja necessário a todos nós considerar o sistema pessoa-no-mundo em sua amplitude e diversidade, quando falamos, por exemplo, de “auto-regulação organísmica” ou de “avaliação intrínseca” em oposição às comparativas ou neuróticas (Perls, Hefferline & Goodman 1951 p.288, 289). Se nesta era pós–moderna não há mais certeza em termos de parâmetros além da ética (Krippner, 1996), talvez esse seja um de nossos desafios.

O estilo brasileiro de contato

Outro ponto que quero levantar tem a ver com nosso estilo de contato. Os brasileiros têm um modo muito afetivo, informal, solto e espirituoso de se relacionar com os outros, em grande parte devido a nossas origens africanas ou portuguesas, pois, ao contrário de outros países Latino Americanos, fomos o único país colonizado pelos portugueses. Portanto, o estilo abrasivo de alguns Gestalt terapeutas nos anos 60 e 70 nunca teve muito sucesso aqui. No Brasil, a preocupação em realmente estar lá com o outro, praticando inclusão, empatia, dando suporte às pessoas, de um modo gentil e afetivo,mesmo se provocativo, sempre esteve presente. Nos Estados Unidos eu vivenciei isso como um estilo que alguns terapeutas tinham e outros não; era uma questão de estilo, não de qualidade profissional. Um terapeuta famoso podia envergonhar ou humilhar o paciente e continuar a ser considerado um grande terapeuta – vi isso. Mas no Brasil isso certamente seria considerado má terapia, nos anos 60, 70 ou hoje, apesar de termos talvez escorregado em outros pecados e erros, como traços narcísicos, projetivos, proflexivos e confluentesno terapeuta – e mesmo a outra polaridade: o erro de ser às vezes receptivo demais. É verdade que nos Estados Unidos, Europa e no Brasil, o interesse nas compreensões advindas das Teorias das Relações Objetaise o interesse na terapia Dialógica,começaram a reparar isso um pouco,chamando atenção para as fragilidades e necessidades especiais do mundo interno de cada cliente. Mas no Brasil, a qualidade do contato na relação terapêutica sempre foi algo que ensinamos e treinamos em nossos cursos de formação em Gestalt terapia – o que, aliás, é o motivo pelo qual os livros de Hyckner tiveram tanto sucesso no Brasil.

Outras diferenças culturais

Comparando a Gestalt terapia brasileira com o trabalho desenvolvido em outros países, diferenças culturais devem também ser levadas em conta. Por exemplo, como os brasileiros são muito voltados para suas famílias, freqüentemente um comportamento considerado “dependente” e portanto “não saudável” nos Estados Unidos, no Brasil é considerado não somente normal como bastante saudável; o que é considerado “assertividade” nos Estados Unidos é frequentemente considerado pura falta de educação no Brasil; e comportamentos considerados “invasivos” nos Estados Unidos, são muitas vezes considerados simplesmente amigáveis no Brasil. E essas diferenças culturais precisam ser consideradas. Já que poucas pessoas lêem nossa língua, me parece que por ter que ler e falar outraslínguas devido àsvárias necessidades de intercâmbio com outros países por motivos econômicos, culturais ou políticos, e também devido à grande miscigenação de diferentes imigrações na nossa cultura, fomos obrigados a ficar mais flexíveis e especialmente atentos à relatividade das diferenças culturais.

Penso que no Brasil, de certa forma, unimos o característico gosto francês por sofisticação intelectual e profundidade (que evidentemente também se faz presente em alguns intelectuais americanos), à criatividade, espontaneidade e permissão para usar a intuição que aprendemos com os Gestalt terapeutas americanos com os quais tivemos contato. Esses são alguns dos ingredientes da “salada Gestáltïca” no Brasil, apesar do “molho” ser Latino – e toda vez que encontramos Gestalt terapeutas da Itália, Espanha e outros países da América Latina há comunalidades que se evidenciam.

Caminhando em direção ao futuro

Quero concluirrelembrando as palavras de Marshal Macluhan de que hoje, com todas as facilidades em comunicação e informação, vivemos em uma aldeia Global. A Gestalt terapia no Brasil, com todas as suas características, seguiu os questionamentos e transformações que a Gestalt terapia teve nos anos 80 e 90 nos Estados Unidos e em outros países.

Em 1996, no nossocongresso nacional, apresentei um trabalho chamado: “Considerando Saudades: Gestalt Terapia Ontem, Hoje e Amanhã (Ciornai 1996a).” Nesse trabalho eu relatei perceber que os estudantes de Gestalt hoje são mais suportivos que antes e estão mais cuidadosamente atentos à necessidade de considerar as realidades internas de cada um nas relações terapêuticas, enquanto, por outro lado, parecem ser bem menos criativos, espontâneos, soltos e à vontade no uso de experimentos e recursos expressivos que tanto caracterizou a Gestalt terapia nos anos 60 e 70. Na ocasião afirmei desejar que essas atitudes fossem combinadas de forma a integrar os aspectos mais positivos de ambos.

Também falei de meu anseio pelo que metaforicamente chamei de “A Gestalt da Esperança”. A Gestalt terapia dos anos 60 até o início dos anos 80 estava impregnada da energia libertária dos movimentos de contra-cultura da época, com sua ênfase na possibilidade do indivíduo experimentar e fazer escolhas de formas de ser e de estar contrárias às normas e padrões sociais, com sua ênfase na possibilidade do indivíduo poder se libertar de suas amarras internas e de padrões de relacionamento limitadores como forma de expandir suas possibilidades de existência no mundo.

Esse cunho libertador impregnava de esperança e vitalidade a maioria das experiências terapêuticas da época – mesmo aquelas que tinham um foco extremamente doloroso, ou aquelas que, olhando em retrospecto, muitas vezes eram uma mera “atuação” e não levavam a nenhum insight, como por exemplo gritar, arrebentar almofadas e outras coisas do gênero. Sinto falta dessa energia.

Por outro lado, apontei para o que metaforicamente chamei de “Gestalt da Dor”, não como característica dominante da Gestalt contemporânea, mas como algo que às vezes vejo acontecer, um movimento de escavucar a história passada ou presente do cliente em busca do dolorido, em sessões muitas vezes sombrias, pesadas, nas quais o humor não tem lugar,sem a vitalidade e a esperança de que falei antes.

Quero enfatizar que falo disto com muita cautela e peço cuidado na escuta, pois vejo como extremamente positivo a possibilidade da dor ter espaço na relação terapêutica, sem a pressa de encontrar “soluções” que muitas vezes aliviam muito mais a ansiedade do terapeuta e sua dificuldade em suportá-la, do que propriamente a dor do cliente, que paradoxalmente, muitas vezes é aliviada justamente pela presença e escuta atenta do terapeuta, i.e., pelo acolhimento encontrado.

A “Gestalt de hoje” caracteriza-se por conter uma atenção delicada e valiosa aos aspectos machucados da “criança interna” ou do “adolescente interno” oculto de cada um, o que permite ao terapeuta acesso ao que Chico Buarque, um de meus compositores prediletos, denominou de “espaços da delicadeza”.

Hoje, trabalhos com raiva, sofrimento, ressentimento, medo, assertividade, limitações existenciais internas, estabelecimento de limites e assim por diante,estão sendo mais relacionados ao background de vida, o “fundo” do qual as figuras da vida presente de uma pessoa emergem; isto é, à sua história de desenvolvimento, padrões cristalizados de relacionamento, experiências passadas, crenças e mitos internos, que são relacionados à suas manifestações presentes, freqüentemente em processos mais longos. Acredito que também nesse aspecto a Gestalt terapia precisa integrar os aspectos positivos destas duas tendências.

Serok (1992), Gestalt terapeuta israelense que conheci no México, enfatizou o fato de que devemos prestar atenção não apenas às Gestalts inacabadas e cristalizadas, mas também à presença ou ausência de “gestalts não iniciadas”, i.e., aos sonhos e projetos futuros. Nesta linha, Rehfeld (1991), colega brasileiro, falando sobre a perspectiva existencial de Heiddeger, disse que “cura é a pré-ocupação com o devir, e que nesse sentido, é a capacidade de se apaixonar pelo futuro”. Sendo assim prosseguiu ele, “o terapeuta caminha junto ao outro, sem um ponto de chegada pré-determinado, em direção ao novo.” É sob essa perspectiva que advogo o resgate da “Gestalt da Esperança”. Para mim esses são desafios que temos hoje, como cidadãos da “Comunidade Global Gestáltica”, independente do país de origem.

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*Este trabalho foi apresentado em 1997 na mesa “Gestalt Terapia na América Latina”na II Conferência da AAGT e publicado originalmente com o título Gestalt Therapy in Brazil”The Gestalt Review , 2, (2), 108-118, 1988.A conferência realizou-se em São Francisco, cidade onde fiz a maior parte de meu treinamento em Gestalt terapia no período de 1979 a 1982 com os profissionais do Instituto de Gestalt de São Francisco. Ao reencontrar alguns deles no evento (Cindy Sheldon, Frank Rubenfeld, Jerry Kogan, Abe Levitsky, Célia Thompson-Taupin), quis aproveitar a oportunidade para agradecê-los por terem feito parte de forma tão significativa da minha vida – o que quero deixar registrado .Apesar de naquela época ser comum encontrar entre Gestalt terapeutas um jeito confrontativo e abrasivo de trabalhar, esta equipe sempre se diferenciou por um estilo de trabalho afetivo, com uma preocupação comsuporte,sem deixar de ser criativo. Isso foi muito valioso para mim.

Também quero deixar registrado meus agradecimentos a Sandra Regina Cardoso, e muito especialmente a Myrian Bove Fernandes, pelos valiosos comentários e contribuições a este trabalho.

1 É verdade que tive também experiências riquíssimas que enfatizavam o compartilhar em grupo, como os grupos de mulheres conduzidos na época por Cindy Sheldon no Instituto de Gestalt de São Francisco, o trabalho de Frank Rubenfeld (1978) sobre “Gestalt Social”, e os workshops coordenados pelos “Psicoterapeutas pela Responsabilidade Social” (Rubenfeld 1986). Mas esta não era a característica predominante da Gestalt Terapia da época.

2 Por exemplo, Boris 1995, Ribeiro 1994,Tellegen 1984 .

3 Por exemplo, Barroso 1989, 1995; Ciornai 1991a ; Elmo 1995; Figeiroa 1996, Fonseca 1989,1996;Penteado 1990, Rehfeld 1991, 1995 ;Lima, 1996;Tsallis 1987.

4 Por exemplo, Barroso 1995, Ciornai 1996a, Lima, 1996; Loffredo 1989, Ribeiro 1987

5 Fagan & Sheppard, Ginger, Hycner, Oaklander, Perls , Perls, Hefferline & Goodman (Parte II), Polster & Polster,, Yontef eZinker.

6 Barros 1994, Cardella 1994, Ciornai (org.)1995, Lima 1993, Loffredo 1994, Ribeiro 1985, 1994, Tellegen 1984.

7 Fernandes 1992, Fernandes et all 1995

8 Por exemplo, Buarque 1992.

9 Por exemplo, Costa 1996, Lillienthal 1989, Minieri 1996, Orgler 1995.

10 Por exemplo, Almeida & Meirelles 1995, Guedes 1995

11 Por exemplo, Frazão 1991, 1992.

12 Por exemplo, Fonseca, 1989, 1996; Penteado 1990;Barroso, 199,1 1995; Rehfeld 1991, 1995.

13 Por exemplo, Cardella 1994, Chagas, 1996; Ciornai 1991b, 1996a, 1996b; Juliano 1991, 1992; Salomão 1996, Tsallis 1996.

14. Por exemplo, Ciornai 1991a, Juliano 1991, Junior 1993; Mendonça, 1995.

15 Por exemplo, Ciornai 1991a , 1996b; Pavani 1992, Silveira 1995, Távora 1995,1996;Tellegen 1987.

16 Por exemplo Bernardini 1989, Elmo 1987, Fernandes 1996; Guedes et all 1991, Herek, 1991, Lilienthal, 1996; Quadros, 1996;Silveira & Silveira1996, Schillings, 1993.

Desde 2001 desenvolvendo o saber em Gestalt-Terapia